domingo, dezembro 21, 2025

ENTRE O AZUL E O ENCARNADO: MEMÓRIAS DE UM NATAL IBÉRICO NO SERTÃO



            Santana do Ipanema, eita terra que mora dentro da gente. Há cidades que passam por nós; Santana, não. Ela fica. Fica nas palavras dos mais velhos, no gesto repetido, na fé cantada, na memória que atravessa gerações como um rio antigo que nunca seca. Dezembro chegava trazendo mais que o Natal: trazia o reencontro com a cultura, com o tempo lento e com a certeza de pertencimento.

            Os mais velhos sabiam — e ensinavam — que o fim do ano era tempo de renovar o corpo e a alma. E assim, de boca em boca, de exemplo em exemplo, a tradição seguia firme, conduzida por mãos femininas, por vozes jovens e por um povo inteiro que fazia da praça central o seu grande palco. No meio do século XX, Iluminata, filha de Misael, minha avó, era uma das guardiãs desse saber antigo. Coordenadora do pastoril, ela ajudava a costurar, não apenas os figurinos, mas os laços invisíveis entre o sertão e a Península Ibérica.

            Minha mãe, ainda moça, aos quinze anos, foi uma das pastorinhas. Vestia cor, música e esperança. Como ela, tantas outras meninas da sociedade santanense se colocavam diante do público, não apenas para dançar, mas para dar continuidade a um ritual que atravessara oceanos. O tempo avançou, os nomes mudaram, mas o pastoril resistiu — porque tradição que cria raiz no povo não se perde, se transforma.

            Recordo uma noite de dezembro, entre o fim dos anos 60 e o começo dos 70. A praça central iluminada, o palanque armado, bancos e cadeiras dispostos ao redor como se o mundo coubesse ali. O pastoril ia começar. Aquele auto brasileiro, herdeiro direto dos dramas sacros ibéricos, trazia nas canções espanholas o fio que ligava o sertão nordestino a Belém da Judéia, numa viagem simbólica feita de canto, disputa e devoção.

            Dois cordões davam vida ao enredo: o azul e o encarnado. Meninas vestidas de cores opostas, mas unidas pela mesma fé e pelo mesmo chão. A Mestra comandava o encarnado; a Contra Mestra, o azul. No centro, a Diana, síntese das cores, ponto de equilíbrio. Ao redor, figuras livres — o anjo, a borboleta, a cigana, a camponesa — personagens que ampliavam o imaginário e misturavam o sagrado e o profano, marca profunda da herança ibérica no Nordeste.

            O povo não assistia calado. Aplaudia, torcia, discutia, brigava e comprava votos. Havia quem fosse azul até o fim, quem defendesse o encarnado com fervor. A disputa era intensa, mas festiva. Vencia quem vendesse mais votos, mas ganhava mesmo a cultura, fortalecida a cada apresentação. As músicas conduziam a noite: a apresentação dos cordões, as alvíssaras, a noite de Natal, o convite para ir a Belém, a disputa das cores e, por fim, a despedida — sempre carregada de emoção, como se cada encerramento fosse também uma promessa de retorno.

            Assim, entre cantos espanhóis e chão sertanejo, o pastoril firmou-se como prova viva da força da cultura ibérica no Nordeste brasileiro. Uma herança reinventada pelo povo, moldada pelo clima, pela fé e pela alegria de Santana do Ipanema. E enquanto houver memória, enquanto alguém se lembrar dessas noites de dezembro, o azul e o encarnado continuarão dançando na praça da lembrança, iluminando o passado e ensinando o futuro.


 

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