sábado, novembro 22, 2025

O DIA EM QUE O MAR FINALMENTE CHEGOU

 

            Era quase 1970, e Santana do Ipanema ainda respirava o cheiro forte da terra quente, da poeira fina que colava nos pés e da calmaria típica do sertão. Naquele tempo, o mar era quase uma lenda. Falava-se dele como quem fala de um sonho distante — azul, grande, sem fim. Muitos santanenses nasciam, viviam e morriam sem ver aquele mundo de água que só existia na imaginação.

            Mas, de vez em quando, alguma família se aventurava pela BR-316, uma estrada de chão batido que serpenteava entre o mato ralo, buracos, pedras e coragem. Era preciso fé e disposição para encarar a viagem. Os ônibus até existiam, mas era mais comum ir de carona: político que ia resolver assunto na capital, proprietários de um carro que levavam passageiros para dividir o gasto do combustível, parentes que avisavam parentes… Era quase um ritual sertanejo de movimento.

            E assim aconteceu naquela semana.

            O político da cidade — homem muito elogiado nas feiras e nas calçadas — avisou que iria a Maceió com sua Rural Willys. Bastou a notícia se espalhar para que uma das famílias amigas se animasse. A esposa, que tinha parentes na capital, viu ali a chance de rever gente querida e, quem sabe, mostrar às crianças o tão falado mar. Aquele mar que só existia nos sonhos.

            Acertaram tudo: dia, hora e até o ponto exato da saída. As crianças, tão ansiosas, passaram três noites sem dormir, imaginando ondas enormes, peixes coloridos, areia fina e coisas que só conheciam pelos relatos dos que tinham ido e voltado encantados.

            Na véspera, a mãe improvisou uma mala com um lençol. Dentro dele, colocou as roupas e, como manda a tradição, separou presentes para os parentes: duas galinhas, um peru, queijo coalho, uma mão de milho, meio saco de feijão… Coisas que tinham mais valor sentimental que financeiro.

            Antes mesmo de o sol pintar o céu de vermelho por trás da serra, a família já estava sentada à porta do político. O pai, que não viajaria, ficou ali acompanhando um pedaço da madrugada, fumando os vinte cigarros da carteira de Continental como quem queima o tempo. Outros viajantes foram chegando, e logo a porta virou uma pequena feira, com conversas cruzadas, risadas altas e elogios ao político — que, vale dizer, nunca eram esquecidos na época da eleição.

            De repente, a Rural Willys apareceu, ronronando e coberta de poeira. Era como se a viagem começasse naquele exato instante.

            O motorista abriu a mala, que logo se transformou num depósito improvisado: sacos de mantimentos, animais vivos, trouxas, presente, ferramentas e, por cima, algumas crianças acomodadas como podiam, rindo do improviso. A parte interna do carro, que deveria levar cinco adultos, recebeu oito — três espremidos na frente, cinco no banco traseiro — além da meninada distribuída entre as pernas dos adultos e em cima dos sacos. Mais produtos foram amarrados no bagageiro sobre o carro.

            E assim seguiram.

            A BR-316 parecia um caminho sem fim. A Rural levantava uma nuvem de poeira que ia ficando para trás como o rabo luminoso de um cometa. Passaram pela pedra do Padre Cícero, cantaram modinhas, conversaram sobre política, falaram da vida, riram das lembranças.

            Uma das crianças, porém, estava enjoada. Encostada no vidro quente, olhava a estrada com uma tristeza muda — até que viu algo estranho: um pneu rolando pela estrada e ultrapassando o carro.

— Mainha, olha! O pneu quer chegar primeiro! — gritou eufórica.

            O motorista, assustado com o alvoroço, freou a Rural. Ao descer, constatou o impossível: o pneu que saíra correndo estrada afora era justamente o pneu traseiro da Rural. Tinha se soltado e, por milagre — ou por sorte de criança — não provocara acidente algum.

            Depois de muita poeira, suor, levantação de carro e aperto de porca, seguiram viagem. Horas mais tarde, cansados, sujos, amontoados, mas felizes, chegaram à capital.

E lá estava ele.

O mar.

Grande, azul, vivo, infinito — tão diferente de tudo o que conheciam.

            As crianças correram para a beira da água, encantadas, rindo como quem descobre um novo mundo. A mãe observava, emocionada, o sonho que enfim se realizava. A família inteira parecia iluminada por aquele encontro com o mar, como se o sertão tivesse aberto uma porta secreta para outra realidade.

            E é assim que muitos santanenses lembram daquele tempo: duro, sofrido, mas cheio de coragem, alegria e histórias que o tempo nunca apaga.

sexta-feira, novembro 21, 2025

A PLÍCIA MIRIM DE SANTANA DO IPANEMA - ANOS DE 1970

 

            A Santana do Ipanema dos anos de 1970 tinha uma cadência própria, uma respiração que misturava o barulho das carroças, o chiado das casas de telha quente e o movimento das ruas de chão batido com o correr das crianças que faziam da cidade o seu grande quintal. E foi nesse cenário, ainda ingênuo, ainda provinciano, que surgiu a Polícia Mirim, uma das iniciativas mais marcantes para quem viveu a infância naquela década.

            A Polícia Mirim não era polícia de verdade — mas na cabeça da meninada era quase como se fosse. Funcionava como um pequeno pelotão cívico, organizado por alguns professores do Grupo Escolar Padre Francisco Correia e apoiado pela prefeitura, que via naquilo uma forma de ensinar disciplina e civismo, coisas muito valorizadas na época.

O uniforme

            A memória mais viva de todos era o uniforme. Camisa branca muito bem passada — passada daquelas que a mãe dizia “cuidado pra não amassar” —, calça azul-marinho que quase sempre ficava curta depois de dois meses de uso, cinto preto e o boné, que era o orgulho do pelotão. O boné tinha uma pala firme, e muitos meninos tentavam deixá-la mais reta apertando entre os livros da escola.

            Os sapatos, esses variavam. Nem todo mundo tinha sapato “de desfile”. Uns iam com Kichute, outros com sapato velho engraxado que a mãe polia com jornal.

Os ensaios

            Os treinos aconteciam no pátio de cimento quente do Padre Francisco Correia, geralmente no fim da tarde. O sol ainda batia forte no fim dos anos 1970, e o calor subia do chão como um vapor que entortava o ar. O professor — às vezes um sargento reformado que ajudava no projeto — caminhava de um lado para outro ensinando a ordem unida:

— Sentido!

— Direita, volver!

— Marche!

            E a criançada ia, meio desengonçada, mas orgulhosa. Para muita gente, era a primeira vez que alguém pedia disciplina de verdade.

As apresentações

            O auge era sempre o desfile de 7 de setembro. A cidade se enfeitava, as famílias se arrumavam cedo, e a avenida principal ficava tomada. A Banda Marcial começava os primeiros toques e o pelotão da Polícia Mirim vinha logo atrás, em passo marcado, tentando manter o ritmo da caixa.

 

            As pessoas batiam palmas. Alguns pais se emocionavam. Um ou outro menino levantava o peito, tentando parecer mais alto. Era o dia em que a cidade via a si mesma organizada, bonita, com a criançada representando o futuro.

A disciplina e as pequenas missões

            De vez em quando, o grupo era chamado para ajudar em pequenos eventos: organizar fila na vacinação, auxiliar na entrega de merenda em alguma festividade da escola, ou até orientar os alunos mais novos na entrada da aula.

            Nada de autoridade de verdade. Mas para quem tinha dez ou onze anos, aquilo dava um senso de importância que até hoje fica guardado.

A marca que ficou

            A Polícia Mirim durou alguns anos e, como muitas coisas daquela época, acabou se perdendo no tempo, engolida pelas mudanças políticas, pela modernização e pelo novo ritmo da cidade. Mas quem viveu lembra. Lembra do boné, do calor do pátio, da voz do professor ecoando, do orgulho besta — e bonito — de marchar na avenida.

            Era uma Santana simples, mas cheia de invenções sociais que acabavam virando lembrança afetiva. A Polícia Mirim foi uma delas: um pequeno capítulo de civismo infantil num tempo em que a cidade parecia grande porque a gente era pequeno.

quinta-feira, novembro 20, 2025

O DIA QUE A CIDADE CHEIRAVA A INFÂNCIA

 

            Em Santana do Ipanema, a infância não era apenas uma fase — era um território livre, amplo como o céu do sertão. Nas ruas quase sem carros, as crianças fabricavam mundos inteiros com duas pedras fazendo o papel de trave, uma bola de plástico ou mesmo uma improvisada, uma bola de couro comprada na loja da família Alcantara. Entre uma partida e outra, unhas arrancadas, joelhos ralados e braços engessados não eram acidentes: eram medalhas de honra da vida de menino e menina.

            O rio Ipanema, serpenteando a cidade, era mais que um rio: era extensão da casa. Ali se banhavam os pequenos, enquanto as lavadeiras batiam roupas nas pedras e estendiam lençóis e camisas sobre o capim para curar ao sol forte. O barulho das batidas na pedra se misturava ao riso das crianças, que aprendiam a nadar antes mesmo de aprender a escrever seus próprios nomes.

            E entre subir e descer as ladeiras, a escola se encaixava como complemento do mundo: era ali que se descobria que existia vida além das fronteiras secas do sertão. A igreja, por sua vez, não era apenas templo — era o coração espiritual de Santana. Católicos, batistas, assembleianos, espíritas… cada grupo vivia sua fé, mas todos sabiam que, no fundo, a cidade inteira respirava religiosidade. Era parte da identidade, assim como o pó das estradas e o calor do meio-dia.

            Mas havia dias em que o coração das crianças batia diferente.

            No São João, por exemplo, quando o cheiro de milho assado e licor invadia as ruas, e as fogueiras iluminavam a noite como pequenas estrelas terrestres. Na festa da Padroeira, quando o parque de diversões chegava e fazia a cidade parecer maior do que realmente era. No Natal, quando a Missa do Galo dava um ar de mistério à madrugada, e cada criança ia dormir sabendo que, ao acordar, um embrulho deixado por Papai Noel estaria aos pés da rede ou da cama. Sapatos novos, roupas cheirando a pano recém-costurado… tudo era festa, tudo era encanto.

            Mas existia um dia especial — um dia que pertencia, mais do que qualquer outro, ao universo infantil: 27 de setembro, dia de São Cosme e São Damião.

            Nesta data, Santana parecia pulsar em ritmo diferente.

            Dias antes, corria o boato pelas ruas de chão batido: “Já tão entregando os cartões na casa do Major Darcy!” O coração da meninada disparava. Os cartões — carimbados, rubricados — eram garantia de uma sacolinha com doces e brinquedinhos. Algumas crianças guardavam o cartão como um tesouro. Outras, que não conseguiam, iam na esperança, porque, no fundo, todos sabiam que sempre tinha um pacote a mais.

            A casa da família de Major Darcy, no centro da cidade, se transformava em ponto de peregrinação infantil. Erguida em local de destaque, ela se enfeitava não com bandeirolas, mas com vozes, risadas e pés descalços batendo no chão apressados. Naquele dia, a fila era tão grande que parecia abraçar o quarteirão.

 

E os olhos das crianças brilhavam — não apenas pelo doce, mas pela sensação de pertencimento, de cuidado, de graça recebida.

            A família fazia aquilo por promessa, por fé, por devoção e, sobretudo, por caridade. Caridade que não humilhava, mas alegrava. Caridade que aproximava. Caridade que, por algumas horas, unia toda a cidade em torno de um gesto simples e profundo: fazer uma criança sorrir.

            Quando finalmente chegava a vez de cada pequeno, o pacote caía nas mãos como um presente do céu. Um punhado de balas, um brinquedinho barato, a lembrança de algum santo. Mas para o coração infantil, aquilo era imenso. Era bênção. Era festa. Era prova de que o mundo podia ser generoso.

            À tarde, as ruas se enchiam de crianças mastigando balas coloridas, correndo com seus brinquedos, mostrando com orgulho o que haviam recebido. E mesmo aquelas que tinham ido sem cartão voltavam para casa com as mãos cheias, porque a cidade sempre dava um jeito de abraçar todos no final.

            O sol se punha atrás das serras, tingindo o céu de laranja. E naquele instante, a fé, a infância e a caridade se entrelaçavam como se fossem parte de um mesmo tecido. Um tecido que, mesmo com o passar dos anos, nunca se desfaz.

            Em Santana do Ipanema, onde cada pedra da rua guarda uma história, o dia de Cosme e Damião era um lembrete eterno: na simplicidade dos gestos se escondem os milagres mais bonitos.

quarta-feira, novembro 19, 2025

SANTANA DO IPANEMA: FRAGMENTOS DE UMA CIDADE EM MOVIMENTO

 

            Há cidades que se contam por ruas; Santana do Ipanema, nas décadas de 1960 e 1970, se contava por territórios de alma. Não era apenas São Pedro, Monumento ou o Centro. Eram camadas vivas de um corpo maior: São Vicente, Camoxinga, a região da Barragem, o Rabo da Gata, o Aterro — cada pedaço com sua gente, seu modo de viver, suas próprias leis silenciosas.

São Vicente: O Silêncio que Ampara

            No alto do bairro de São Vicente, onde o vento parecia soprar mais devagar, estava a Casa de Repouso São Vicente de Paula. As janelas sempre entreabertas deixavam escapar conversas murmuradas, risos esquecidos, histórias que se perdiam no tempo. Ali viviam idosos sem família, e outros que lutavam contra os labirintos da mente. Era um lugar de quietude e de afeto tardio, visitado por poucos, mas lembrado por todos.

O Aterro e Suas Travessias

            Para muitos, o Aterro era um lugar a evitar; para outros, era caminho obrigatório. Ali sobreviviam mulheres que trocavam carícias por sustento, num pedaço da cidade onde julgamentos e silêncios caminhavam lado a lado. E, apesar das proibições veladas, dezenas de crianças passavam por ali todos os dias a caminho da Escola Estadual Deraldo Campos. Quem viveu essa época conhece bem aquele trecho onde inocência e dureza dividiam a mesma rua.

Camoxinga: O Pulso da Cidade

            Da estrada do Aterro, chegava-se ao Maracanã, ponto de encontro do Camoxinga. As calçadas eram altas, devido aos terrenos serem em declive e, ao mesmo tempo, dava perspectiva à vida que corria. O Camoxinga era um bairro completo: tinha o hospital, tinha a igreja de São Cristóvão e tinha histórias que só quem viveu consegue contar.

            A festa de São Cristóvão marcava o calendário santanense. Era mais do que religião: era espetáculo, era comunidade. A procissão de carros formava uma fila interminável, serpentando pelas ruas. À frente, num caminhão decorado, ia a imagem do santo, e o motorista fazia soar a buzina como um toque de bênção. Cada buzina que ecoava atrás parecia uma prece, um agradecimento, um pedido. O som se misturava aos hinos religiosos nos alto-falantes, criando uma trilha sonora que se escutava com o corpo inteiro.

O Estádio e os Domingos de Clássico

            Subindo para o Alto do Cemitério, chegava-se ao estádio. Era ali que a cidade parava para ver Ipiranga e Ipanema disputarem a glória. Nos domingos de clássico, não havia quem não encontrasse um jeito de dar uma passada pelo campo, nem que fosse para ouvir o burburinho da torcida, sentir o cheiro da poeira levantada pelos pés ansiosos dos jogadores, ou discutir, como sempre, quem tinha o melhor ataque.

Barragem e o Rumo das Águas

            Do Maracanã, descendo pela estrada de asfalto novo, chegava-se à Barragem. Uma ponte estreita cortava o Rio Ipanema, cercada por muros erguidos para segurar as águas nas épocas de enchente. Para as crianças, era aventura. Para os adultos, era vigilância. Para todos, era um divisor de histórias — e de destinos.

No Rastro do Rabo da Gata

            Ao atravessar a ponte nova, no final da Barão do Rio Branco, despontava o rabo da gata — uma região de estrada longa, ladeada de mato, pequenas casas e mistério. Esse caminho seguia rumo a Olhos D’Água e Pão de Açúcar, cidade moldada às margens do Velho Chico. Era uma estrada que carregava poeira, sonhos, promessas e despedidas.

            No alto da serra, dominando a paisagem, estava a famosa micro-ondas, eternizada por Remi Bastos. Para muitos, era só uma torre. Para os santanenses, era um marco: sinal de modernidade chegando, cortando a solidão da caatinga com seus sinais invisíveis.

Uma Cidade de Muitas Cidades

            Santana daquelas décadas era feita de fronteiras e encontros. As divisões naturais da cidade criavam pequenas culturas particulares, mas todas se entrelaçavam na vida diária. O rio, as pontes, os bairros, os times de futebol, as festas, a poeira das estradas — tudo compunha um mosaico vivo.

            Hoje, quem viveu aquele tempo guarda essas memórias como quem guarda um álbum raro. Não pelas fotografias, mas pelos sons, pelos cheiros, pelos medos e alegrias que fizeram parte de uma Santana do Ipanema que já não existe mais — a não ser dentro de quem a viveu.

terça-feira, novembro 18, 2025

OS MENINOS DA RUA DAS LADEIRAS

 

            Naquele pedaço de Santana do Ipanema, onde as casas pareciam conversar umas com as outras pelas janelas abertas, nascer no início dos anos de 1960 era nascer livre. Livre como o vento quente que descia das serras, como o pó fino que se levantava das ladeiras de pedra, como os riachos que corriam quando o inverno dava o ar da graça.

            A rua era a primeira escola — e o primeiro lar fora de casa.

            As portas ficavam escancaradas desde cedo. As mães, vestidas com seus aventais floridos, cuidavam da casa, da comida, dos filhos, das conversas com vizinhas. Os pais saíam para seus ofícios, alguns com marmitas embrulhadas em panos, outros montados em bicicletas, outros ainda indo a pé medir terras, trabalhar no comércio ou ajudar na roça de parentes.

            Para as crianças, a única obrigação era brincar.

            Assim que o sol começava a esquentar o terreiro, os pés pequenos já estavam correndo pelas ladeiras nuas, saltando as pedras, inventando caminhos, procurando uns aos outros. Em minutos, uma turma inteira se formava, como se tivessem sido convocados por algum sino invisível.

            Brincar era um trabalho sério.

            Havia os grupos que jogavam bola com bola de meia; os que preferiam as “ximbras” feitas de vidro transparente; as meninas rodavam cordas e riam alto; e os mais aventureiros corriam para os matos e porões das casas antigas, onde a imaginação fazia de qualquer canto um castelo, um esconderijo, uma fortaleza.

            Mas o grande palco das aventuras era o Panema.

            Quando o rio secava e deixava apenas poças grandes, a criançada se jogava na água rasa, deitada sobre pedras lisas, aprendendo a nadar com os braços e pernas agitados como se imitassem um cachorro. Depois, ousavam mergulhar sem a pedra, e aos poucos iam dominando a arte dos mergulhos, das braçadas largas.

            O batismo final era no Poço dos Homens.

            Entre duas pedras altas, separadas por uns três metros, os valentes saltavam entre uma e outra, suando frio, tremendo as pernas, mas vencendo o medo com gargalhadas. Quem conseguia tocar o fundo do poço com o pé virava herói do dia.

            Voltavam para casa sujos, arranhados, famintos — e felizes.

            Na mesa, sempre havia fartura: cuscuz fumegante, aipim macio, arroz soltinho, feijão engrossado, frango de quintal, charque acebolada, queijo de coalho, leite com nata grossa. Nos dias festivos, buchada de bode; na Páscoa, bacalhau; no Natal, peru.

            Às vezes, depois dos machucados, vinham os cuidados: o iodo que ardia feito fogo, o mertiolate que deixava a pele cor de ferrugem, e antes do almoço, a famosa Emulsão de Scott, o “fortificante” que fazia a cara das crianças virar careta antes mesmo de chegar à boca. Mas o medo da palmatória pendurada atrás da porta garantia que o frasco voltasse vazio para a prateleira.

            A fé também fazia parte da rotina. A catequista Letícia reunia dezenas de crianças para ensinar paciência, respeito e os preparativos para a primeira comunhão. Depois vinha a confirmação — e todo mundo ia arrumado como se fosse um desfile de reis.

            Quando a tarde avançava e o calor dava trégua, a meninada sumia rumo ao riacho do Bode, carregando pão com mortadela e cajuína comprados na bodega de seu Carrito. Lá, pescavam, tomavam banho e contavam histórias de assombração, enquanto o sol queimava o chão e tingia tudo de dourado.

            A televisão era raridade. Uma ou outra casa tinha uma TV, a emissora Tupi que funcionava, não com muita boa vontade: chiado, chuvisco, alguém no telhado rodando a antena e os vizinhos todos sentados no chão, assistindo ao mesmo tempo.

            A cidade era pequena, mas o coração era grande. Todos se conheciam. Todos cuidavam de todos. Criança chamava adulto de tio ou tia, e o adulto chamava criança pelo nome completo, para reforçar o respeito.

            E assim, entre ladeiras de pedras, mato verde, banhos de rio, brincadeiras infinitas e mesas fartas, se formou uma geração inteira — alegre, unida, valente — que cresceu acreditando que o mundo começava e terminava ali, naquele canto quente e querido do sertão.

            Uma geração que leva Santana do Ipanema no peito até hoje, como quem carrega o perfume da infância no bolso da memória.

segunda-feira, novembro 17, 2025

MEMÓRIA DO GRUPO ESCOLAR PADRE FRANCISCO CORREIA

            Há histórias que não cabem apenas nas linhas do tempo. Elas se espalham pela cidade, pousam nos telhados antigos, atravessam gerações e, quando contadas, voltam a perfumar o ar com a lembrança de um tempo em que estudar era quase um ato de coragem. Assim era a presença do Grupo Escolar Padre Francisco Correia na vida dos santanenses: uma porta estreita, mas luminosa, que abria caminhos para além das ladeiras de Santana do Ipanema.

            Fundado em 1938, o Grupo foi durante décadas o palco onde tantas infâncias descobriram que o mundo podia caber dentro de um caderno de capa azul. Ali, entre o cheiro do giz e o murmúrio das leituras de farfalho, as crianças enfrentavam o desafio que marcava a passagem da meninice para a adolescência: a temida prova de admissão. O livro Programa de Admissão era quase um companheiro indesejado — pesado, exigente, capaz de tirar o sono de pré-adolescentes que carregavam nas costas o sonho das famílias: “Passar no exame”. Era como se cada página folheada fosse um tijolo colocado no futuro que ainda estavam aprendendo a imaginar.

            E naquele espaço em forma de círculo, dividido por arcos, onde o pátio abraçava as salas, reinava a figura firme e afetuosa de Dona Marinita Peixoto Noya. Diretora, educadora, guia — mulher cuja autoridade não se impunha pelo medo, mas pelo respeito que florescia espontâneo em todos que ali estudavam. Entre a sala da direção, a secretaria simples, as poucas salas que recebiam alunos em dois turnos, e a rotina da merenda servida com cuidado, Dona Marinita era a alma que fazia a engrenagem funcionar.

            Até que um dia, a doença que rondava sua saúde venceu a batalha. E Santana do Ipanema viu algo que até hoje ecoa como uma cena de profunda humanidade e respeito.

            A cidade parou. O silêncio se instalou como um manto.

            Das portas do Grupo saiu a convocação: todos os alunos deveriam acompanhar o cortejo, uniformizados, levando flores.

            E assim aconteceu.

            Da Rua de São Pedro ao alto do Cemitério Santa Sofia, uma fila imensa de crianças percorreu ruas que pareciam mais longas do que nunca. Passaram pela Antônio Tavares, cruzaram o centro, desceram pela Barão do Rio Branco, seguiram pela ponte do padre e começaram a subida pela Camuxinga. Marchavam como num desfile de sete de setembro, mas não havia banda. Como numa procissão, mas não havia andor. O que havia era uma cidade inteira reconhecendo, através daqueles pequenos passos, o valor de quem dedicou a vida a ensinar.

            As flores que faltaram às roseiras naquele dia sobraram no coração da memória. Cada pétala entregue parecia dizer: “Obrigado, Dona Marinita. O que somos, devemos também a você.” Aquele cortejo não foi apenas uma despedida. Foi um lembrete: a educação é o que sustenta uma comunidade, o que levanta crianças e amadurece cidades. É a força silenciosa que transforma meninos e meninas em cidadãos capazes de sonhar e de agir. É o legado que não se sepulta.

 

            E assim, mesmo décadas depois, quando alguém passa pelo antigo bairro do Monumento, ainda é possível sentir — como brisa antiga — a certeza de que um país só avança quando respeita seus mestres, suas escolas, suas histórias. O Grupo Escolar Padre Francisco Correia foi mais do que um prédio.

            Foi um coração pulsando em nome do futuro.

            E esse pulso continua vivo em cada lembrança que ainda floresce, como as rosas daquele dia, na alma de Santana do Ipanema.


domingo, novembro 16, 2025

SANTANA DO IPANEMA - MEMÓRIAS DE UM TEMPO QUE BRILHAVA DEVAGAR

 

            Dizem que toda cidade tem sua alma. A de Santana do Ipanema, porém, parecia ter duas: uma que crescia silenciosa rumo ao futuro, abrindo ruas novas e empurrando cercas para mais longe… e outra que permanecia ali, firme, dentro do grande círculo central onde tudo acontecia e nada mudava. Era como olhar para uma maquete viva: cada casa, cada comércio, cada pessoa já tinha seu lugar marcado, como personagens de uma peça que nunca saía de cartaz.

            Quem chegava aos sábados para a grande feira — agricultores vindos de Curralinho, Areias, Pedra d’Água, Lajeiro — era recebido por aquele cenário conhecido, quase sagrado. O calçamento de paralelepípedo, a algazarra começava, e o cheiro de carne de bode misturado ao de rapadura fresca parecia anunciar que ali o tempo andava, mas devagar, obedecendo ao ritmo do sertão.

            Logo na entrada do centro, subindo pela Rua Antônio Tavares, as primeiras referências surgiam como sinais de que se estava chegando ao coração da cidade. Do lado direito, as Casas Pernambucanas exibiam seus tecidos alinhados, dobrados com carinho, como se fossem joias. Do lado esquerdo, a farmácia de seu Zeca seu Aleixo e Genival, que vendia remédios, conselhos, simpatias e até apostas da loteria — porque seu Zeca, além de boticário improvisado, era também o mensageiro da sorte.

            Mais adiante, antes da curva que levava ao movimento do centro, vinha a loja de discos de Val. Era ali que a juventude de Santana encontrava o eco do mundo: Roberto Carlos, Waldick Soriano, Dalva, Nelson Gonçalves. Alguns mais velhos lembravam que antes ali tinha sido a bodega de seu Marinho, e às vezes até parecia possível ouvir o tilintar das garrafas que Marinho organizava no fim das tardes quentes.

            Atravessando a rua e aproximando-se do círculo central, surgia o sempre animado Bar Continental, ponto obrigatório dos homens que queriam um gole gelado e uma conversa despretensiosa. Ao lado, a loja de tecidos de Gracita, enfeitava a calçada com cores vivas. E, um pouco adiante, vinha o ponto mais doce da cidade: a Sorveteria Maringá. Crianças correndo, adolescentes rindo sem motivo, casais de mãos suadas trocando olhares tímidos… Ali era onde a vida aprendia a ser leve.

            Subindo em direção à Rua Nova, as referências continuavam: a casa de ferragens de Rubens, sempre perfumada de óleo e metal novo; a padaria de Raimundo, onde o cheiro quente do pão chamava mesmo quem já tinha tomado café; e a livraria de Ana Agra, responsável por abastecer estudantes, professores e sonhadores com cadernos, lápis e pequenas histórias impressas.

            Descendo novamente para Barão do Rio Branco, o movimento voltava a crescer. Havia a Casa de ferragens Cristino, a loja de alfaiataria com tecidos elegantes, de propriedade do casal Benedito e Virginia Nepomuceno, Casa do Ferrageiro, e a farmácia de seu Alberto Agra, um homem que parecia conhecer tanto de remédio quanto de mapas e montanhas distantes.

            Na entrada da Barão, o bar de Sebastião do Padre marcava território. Diziam “do Padre” porque era sobrinho do padre Cirilo, e isso bastava para ser conhecido por toda a cidade.

            A poucos passos dali o cheiro de couro trabalhado denunciava a oficina e armazém de seu Evilásio, herdeiro das técnicas antigas de fazer sapatos aprendidas com seu Aprígio, pai de José Ricardo, o maestro da banda Santa Cecília — outro símbolo vivo da tradição do lugar.

            E ao lado, firme como poste de esquina, estava o armazém de Zezito de Deoclécio. Ali se vendia de tudo: arroz, açúcar, sal, óleo, querosene, vela, sabão, café. Zezito era quase um prefeito da zona rural, porque conhecia cada agricultor pelo nome, pela roça e, às vezes, pelas dívidas também. Era ele quem abastecia muitos dos pequenos comércios da cidade, girando a roda do sertão com generosidade e calma.

            Mais adiante, outros armazéns compravam feijão, milho, algodão. Um ciclo que parecia eterno: o que a terra dava, a cidade recebia, transformava e devolvia em vida. Já os animais — galinhas, bodes, carneiros — tinham seu espaço reservado mais próximo do rio Ipanema, onde o barulho era grande e a poeira maior ainda.

            Em frente a esses armazéns, no lado direito da rua, havia comércios que se destacavam: a loja de tecidos Casas GG, enorme, movimentada, um orgulho local; a distribuidora de bebidas, responsável por refrescar as festas do sertão inteiro; e o armarinho que, como uma caixinha de costura viva, vendia miudezas capazes de salvar qualquer dona de casa em apuros.

            E assim era Santana do Ipanema naquela época: um lugar onde cada porta aberta carregava uma história, onde cada pessoa tinha apelido, parentesco e propósito, onde a cidade crescia, mas sem nunca perder o rosto.

            Hoje, quem caminha pelas mesmas ruas talvez não encontre os mesmos nomes nas fachadas. Mas basta fechar os olhos para ouvir, ainda ecoando entre as paredes antigas, a voz do feirante chamando preço, o barulho dos motores da Rural Willys chegando da roça, o sino da matriz tocando para a missa, e o riso das crianças que corriam na calçada da sorveteria Maringá.

            Porque cidades como Santana do Ipanema não desaparecem. Elas apenas mudam de roupa. A alma, essa, fica para sempre.

JULHO EM SANTANA: QUANDO A JUVENTUDE VIRAVA FESTA

             Santana do Ipanema sempre foi mais que um ponto no mapa. Foi — e ainda é — um lugar de pertencimento, um chão que cria raízes i...