Percorrer a margem esquerda do rio Ipanema, um pouco
adiante do bairro de São Pedro, era atravessar uma fronteira invisível entre o
cotidiano e o sagrado. Ali se estendia o Bebedouro, também chamado Maniçoba, um
território de casas simples, erguidas com o esforço diário de agricultores,
pedreiros, cozinheiras, lavadeiras, passadeiras, feirantes e vaqueiros. Gente
que aprendia a vida no trabalho e ensinava, sem saber, lições profundas às
crianças que por ali passavam.
Nos anos 70, as crianças de Santana do Ipanema faziam do
rio e de suas margens um grande quintal. Em meio às brincadeiras, iam
descobrindo o Bebedouro como quem descobre um livro vivo. Cada passo era uma
página, cada encontro uma história. Foi assim também naquela aula de campo do
ginásio Santana, quando o professor Clerisvaldo conduziu seus alunos com
pranchetas, folhas de papel A4, lápis e borrachas, ensinando que a geografia
não mora apenas nos livros, mas se revela no chão batido, nas casas, nos
caminhos e nas pessoas.
Enquanto desenhavam mapas, os alunos aprendiam a ler o
mundo. Observavam os tipos de construção, o traçado das ruas, o curso do rio.
E, no meio desse aprendizado, surgiam as ruínas da antiga capela de São João
Batista, construída, dizia-se, por volta de 1917. As paredes gastas pelo tempo
guardavam rezas antigas, promessas sussurradas e a fé de gerações. Mais
adiante, a capela de São Benedito pulsava viva, sobretudo nos dias de festa.
Quando se aproximavam os festejos do santo, o Bebedouro
se transformava. A comunidade se unia como um só corpo: organizava a banda de
pífano e zabumba, preparava o cortejo e saía pelos bairros de Santana, passando
de casa em casa. No centro, batiam às portas pedindo ajuda, e recebiam de tudo:
alimentos, objetos, dinheiro, fé. Cada doação era um gesto de pertencimento,
uma prova de que o sagrado se constrói coletivamente.
À frente do cortejo iam as mulheres, vestidas de preto,
com escapulários ao pescoço e a imagem de São Benedito cuidadosamente arrumada
dentro de uma caixa, enfeitada com flores e protegida por um tecido de nylon. À
frente da imagem, um espaço aberto para pedidos e moedas, onde o povo
depositava dores, esperanças e agradecimentos. Logo atrás vinha a banda de pífano
e zabumba, tocando sem cessar, acordando ruas, corações e memórias.
Em volta, surgiam os Mateus, figuras coloridas e
inquietas, com chapéus pontudos cobertos de espelhos, chicotes estalando no
chão e rostos pintados de carvão. Eram o riso e o espanto, o profano dançando
com o sagrado. As crianças corriam, riam, seguiam o cortejo, encantadas com
aquele mundo em movimento. Sem perceber, aprendiam sobre fé, cultura,
solidariedade e identidade.
Esses eventos eram mais que festas: eram salas de aula
abertas. Ali, as crianças aprendiam que a religião não se separa da vida, que a
cultura nasce do povo e que a memória se constrói no coletivo. Os anos 70 em
Santana do Ipanema ensinaram, com música, devoção e alegria, que crescer é
também guardar dentro de si o som da zabumba, o brilho dos espelhos dos Mateus
e a certeza de que pertencer a um lugar é carregar suas histórias para sempre.

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