sábado, dezembro 20, 2025

ÀS MARGENS DO IPANEMA: FÉ, CULTURA E INFÂNCIA NOS ANOS 70


 

            Percorrer a margem esquerda do rio Ipanema, um pouco adiante do bairro de São Pedro, era atravessar uma fronteira invisível entre o cotidiano e o sagrado. Ali se estendia o Bebedouro, também chamado Maniçoba, um território de casas simples, erguidas com o esforço diário de agricultores, pedreiros, cozinheiras, lavadeiras, passadeiras, feirantes e vaqueiros. Gente que aprendia a vida no trabalho e ensinava, sem saber, lições profundas às crianças que por ali passavam.

            Nos anos 70, as crianças de Santana do Ipanema faziam do rio e de suas margens um grande quintal. Em meio às brincadeiras, iam descobrindo o Bebedouro como quem descobre um livro vivo. Cada passo era uma página, cada encontro uma história. Foi assim também naquela aula de campo do ginásio Santana, quando o professor Clerisvaldo conduziu seus alunos com pranchetas, folhas de papel A4, lápis e borrachas, ensinando que a geografia não mora apenas nos livros, mas se revela no chão batido, nas casas, nos caminhos e nas pessoas.

            Enquanto desenhavam mapas, os alunos aprendiam a ler o mundo. Observavam os tipos de construção, o traçado das ruas, o curso do rio. E, no meio desse aprendizado, surgiam as ruínas da antiga capela de São João Batista, construída, dizia-se, por volta de 1917. As paredes gastas pelo tempo guardavam rezas antigas, promessas sussurradas e a fé de gerações. Mais adiante, a capela de São Benedito pulsava viva, sobretudo nos dias de festa.

            Quando se aproximavam os festejos do santo, o Bebedouro se transformava. A comunidade se unia como um só corpo: organizava a banda de pífano e zabumba, preparava o cortejo e saía pelos bairros de Santana, passando de casa em casa. No centro, batiam às portas pedindo ajuda, e recebiam de tudo: alimentos, objetos, dinheiro, fé. Cada doação era um gesto de pertencimento, uma prova de que o sagrado se constrói coletivamente.

            À frente do cortejo iam as mulheres, vestidas de preto, com escapulários ao pescoço e a imagem de São Benedito cuidadosamente arrumada dentro de uma caixa, enfeitada com flores e protegida por um tecido de nylon. À frente da imagem, um espaço aberto para pedidos e moedas, onde o povo depositava dores, esperanças e agradecimentos. Logo atrás vinha a banda de pífano e zabumba, tocando sem cessar, acordando ruas, corações e memórias.

            Em volta, surgiam os Mateus, figuras coloridas e inquietas, com chapéus pontudos cobertos de espelhos, chicotes estalando no chão e rostos pintados de carvão. Eram o riso e o espanto, o profano dançando com o sagrado. As crianças corriam, riam, seguiam o cortejo, encantadas com aquele mundo em movimento. Sem perceber, aprendiam sobre fé, cultura, solidariedade e identidade.

            Esses eventos eram mais que festas: eram salas de aula abertas. Ali, as crianças aprendiam que a religião não se separa da vida, que a cultura nasce do povo e que a memória se constrói no coletivo. Os anos 70 em Santana do Ipanema ensinaram, com música, devoção e alegria, que crescer é também guardar dentro de si o som da zabumba, o brilho dos espelhos dos Mateus e a certeza de que pertencer a um lugar é carregar suas histórias para sempre.


 

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