Em Santana do Ipanema, o Carnaval nunca começa quando o calendário manda. Lá, a festa nasce antes, nos ensaios apressados das escolas de samba, no batuque improvisado dos blocos, no riso frouxo das crianças com seus sacos de polvilho prontos para o mela-mela. A cidade inteira parece entrar num compasso próprio, como se cada rua, cada ladeira, cada quarteirão tivesse seu próprio coração pulsando em ritmo de frevo e marchinha.
Os blocos tradicionais — o do Bacalhau, o Urso Preto, os
Cangaceiros — surgem como velhos amigos que a cidade reencontra todo ano. Entre
eles se misturam figuras fantasiadas das mais inesperadas beldades: tem moça
que na verdade é rapaz, tem barba por fazer florescendo por baixo da maquiagem
borrada, e tem sempre alguém vestido de noiva, arrastando véu, rendas e
histórias pelas calçadas quentes. E, claro, os blocos dos sujos, aqueles que
aparecem sem aviso, pintados, suados, felizes.
No sábado de Zé Pereira, o Tênis Clube Santanense vira
outro mundo. As portas se abrem e as marchinhas começam, vivas na boca da banda
contratada de longe. Lá dentro, ninguém é mais rico ou mais pobre, mais
importante ou menos: é tudo um grande salão circular onde cada um brilha do seu
jeito. As mesas ficam em volta, cheias de copos, de histórias e de risos,
enquanto no centro as duplas giram e giram sem parar.
Há sempre aquela senhora com a toalhinha de rosto, que
tanto serve para enxugar o suor quanto para guiar o parceiro nas voltas, como
se fosse um laço macio que conduz o ritmo. E tem o folião com o copo erguido,
que dá um passo para frente, dois para trás, repetindo entre gargalhadas:
— Eu chego já... eu chego
já!
Ninguém sabe para onde ele diz que vai, mas todo mundo
adora o caminho que ele faz.
A festa no clube só termina quando o relógio teima em marcar
cinco da manhã, e mesmo assim é preciso pedir para o povo ir embora.
Mas no domingo, às sete horas em ponto, todo mundo está
na Matriz de Senhora Santana, vestidos como se tivessem dormido cedo — mas
ninguém dormiu. O padre Cirilo fala, mas o coração dos fiéis está em outro
lugar: nas fantasias guardadas em casa, no cheiro de goma e purpurina, no
batuque que parece ecoar das ruas.
Quando o padre diz “vão em paz”, ninguém espera o resto.
A frase termina no ar vazio das portas batendo. O Carnaval, afinal, espera.
De porta em porta passam os blocos. E em cada porta
aberta há uma mesa com cachaça, um prato de tira-gosto e uma gargalhada
diferente. O bloco do Bacalhau canta forte:
“O bacalhau só presta com
café,
vamos beber agora na casa
do seu José!”
Reginaldo, vestido de noiva — véu torto, batom borrado,
sorriso largo — canta pelo caminho:
“A cara de rapariga é um
barbado, não há quem diga!”
E ninguém resiste: ri, acompanha, abraça.
Remi surge logo atrás, cantando com orgulho “Santana dos
Meus Amores”, seu hino particular da cidade. E quem ama Santana canta junto —
seja por tradição, por alegria ou pela simples vontade de pertencer àquele
instante.
Na segunda-feira, as escolas de samba se preparam para o
grande desfile. Duas apenas — mas para Santana, são como dez. De um lado, a
escola do Camoxinga; do outro, a do Monumento. Separadas por um riacho coberto
pela famosa ponte do padre, mas unidas pela paixão da bateria. A cidade inteira
se aperta nas calçadas para ver quem dança mais bonito, quem brilha mais forte,
quem arrasta mais emoção.
Na terça, ninguém sabe quem ganhou... mas também não
importa. O importante é ter vivido.
E então chega a madrugada da Quarta-feira de Cinzas. O
Tênis Clube fecha às cinco da manhã, mas ninguém se despede. A banda sai pelas
ruas, conduzindo a última procissão profana do ano. Os foliões seguem atrás,
cansados, felizes, ainda brilhando de purpurina, cantando como se o peito fosse
estourar:
“Ô quarta-feira ingrata,
chegou tão depressa,
só pra contrariar!”
E, quando o sino da matriz toca às sete, chamando para a
Missa das Cinzas, muitos vão — olhos vermelhos, corpo dolorido, mas alma leve.
Ali, diante do altar, o sagrado e o profano se encontram pela última vez antes
da quaresma. Um pede silêncio, o outro deixa uma última risada escapar.
Santana do Ipanema respira fundo.
O Carnaval termina.
Mas a alegria, essa nunca vai embora.