sábado, dezembro 06, 2025

A INFÂNCIA QUE ENSINA SEM TIRAR O ENCANTO

 

            Nasci em Maceió, mas foi em Santana do Ipanema que aprendi a ser menino. Cheguei ainda com semanas de vida, embalado pelo aconchego da família que me esperava na travessa Antônio Tavares. Ali havia uma casa grande, pulsante, cheia de vida, ladeada pela dos meus avós paternos: seu Deoclécio, sempre com sua postura de homem sério e trabalhador, e dona Amélia, de olhar firme, coque apertado e carinho pronto para qualquer neto que lhe aparecesse pela porta.

            O centro do meu mundo era o armazém de secos e molhados do meu pai, Zezito, na Barão de Rio Branco. À primeira vista, era apenas uma mercearia simples; mas para mim, era uma escola completa. Entre sacos de feijão, rolos de barbante, latas coloridas e o perfume das especiarias, aprendi a fazer contas antes mesmo de saber escrevê-las no caderno. Aprendi a medir, pesar, dar o troco, escolher o melhor produto e, sobretudo, a olhar no olho de quem comprava — porque vender também é confiar.

            Mas nada disso impediu que eu fosse criança.

            A rua, a escola e a brincadeira tinham tanto espaço quanto as prateleiras do armazém. Estudei desde os quatro anos na escola de dona Penina e da professora Maria. Ali, entre cantigas, lições simples e o quadro-negro que rangia, aprendi as primeiras letras. Depois, no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, com a professora Laura Chagas, conclui o quarto ano, trazendo comigo não apenas cadernos cheios, mas histórias e travessuras que só quem estudou em escola pública do interior conhece.

            Foi também nesse período que a figura de minha mãe, Maria do Socorro, começou a ganhar uma força especial na minha formação. Se meu pai me ensinava o comércio, ela me ensinava o mundo. Sua arte era a palavra escrita — e era com livros abertos, cadernos rabiscados e diálogos sempre ricos que ela me empurrava para a leitura e para a escrita. Minha mãe convivia com a elite intelectual de Santana do Ipanema, discutia literatura, preservava histórias e registrava em seus escritos uma verdade que ecoa até hoje: Santana do Ipanema é Terra de Escritores. Esse orgulho, ela não apenas defendia — ela plantava em mim.

            Enquanto isso, meu pai ia e voltava de suas viagens comerciais, sempre trazendo alguma novidade para vender. E nós, eu e meus irmãos, transformávamos cada mercadoria numa aventura. Quando veio a carga de laranjas, seguimos para a feira das frutas. Marcello ao meu lado, vendemos tudo. No dia do saco de maxixes, fiquei perto do mercado da carne — e ali descobri que a voz firme vale tanto quanto a coragem de ficar sozinho no meio da feira. Houve também o dia dos baldes de mel de abelha. Enchemos garrafas de vidro e saímos de porta em porta. Quem comprava levava o mel, mas nós levávamos o aprendizado: coragem, comunicação, persistência.

            E como esquecer o sábado da rapadura?

            Um quarto inteiro da nossa casa tomado por aquele cheiro doce. Eu e Mércia pegamos a velha carroça de pedreiro, fomos à feira e montamos nosso pequeno comércio. Ela atendia os fregueses enquanto eu corria de volta para casa buscar mais mercadoria. A rapadura sumia das nossas mãos como mágica — e nós ríamos, suados, felizes, sentindo que o mundo podia ser grande, mas cabia na palma das nossas mãos trabalhadoras.

            Nessa rotina, descobri que responsabilidade não rouba a infância — ela dá forma a ela. Eu brincava, estudava, corria nas ruas, inventava mundos com meus irmãos. Mas também ajudava, participava, aprendia a confiar em mim mesmo. A vida adulta pode até ter escolhido outros caminhos para mim, mas o que aprendi ali ficou como alicerce: disciplina, criatividade, coragem, respeito pelo esforço e pela palavra dada. E muito disso devo a meus pais: ao pai que me ensinou o valor do trabalho, e à mãe que me ensinou o poder das palavras.

            Hoje, ao revisitar essas memórias, percebo algo ainda mais profundo: Educar uma criança não é afastá-la do mundo, mas deixá-la participar dele aos poucos. É permitir que ela seja útil sem deixar de ser criança. É ensinar responsabilidade sem apagar o brilho curioso do olhar. É mostrar que trabalho é digno, mas que brincar também é. É lembrar que toda lição, quando vivida com amor, vira história — e histórias duram para sempre.

E estas são as minhas.

            As que hoje divido com vocês, com o mesmo sabor doce de rapadura que marcou minha infância em Santana do Ipanema — terra que minha mãe, com sua escrita firme, eternizou como Terra de Escritores.

sexta-feira, dezembro 05, 2025

O EDUCANDÁRIO DAS INFÂNCIAS FELIZES

 

            Diziam que, em Santana do Ipanema dos anos de 1960, todas as crianças tinham vindo ao mundo no mesmo ano. Eram tantas, espalhadas pelas ruas de pedra e barro, que pareciam formiguinhas coloridas correndo, rindo, inventando mundos inteiros com um pedaço de madeira, uma pedrinha lisa ou um galho de árvore. A cidade vibrava com o barulho dos passos miúdos.

            No educandário da professora Penina, o coração da infância batia mais forte. A escola tinha dois turnos e duas mestras: dona Penina, firme como um tronco de imburana, e a professora Maria, doce como o mel de engenho. Nas salas multisseriadas, onde pequenos e um pouco maiores aprendiam lado a lado, tudo virava aprendizado. De manhã bem cedo, antes que o sol abrisse as janelas do céu, as crianças já estavam sentadas, atentos aos patinhos amarelos que dona Penina colava no quadro flanelado. Cada patinho, com seu biquinho sorrindo, ensinava números, letras e até um pouco de ciência:

— “É um patinho amarelinho… são dois patinhos amarelinhos… são três patinhos amarelinhos… todos pequenininhos!”

            Era cantar para aprender e aprender cantando, jeito de criança não esquecer jamais. Quando a lição era de geografia, as professoras explicavam com música, mãos dançando no ar:

— “Chove chuvinha, chove chuvinha de janeiro… corre, corre aguaceiro!”

            As mãos viravam nuvens, os dedos viravam pingos, e os olhinhos brilhavam como quem vê o mundo nascer de novo.

            Mas o melhor dia era quando a professora Penina anunciava:

— Amanhã tem passeio no campo!

            A partir daí, ninguém dormia direito. Os corações ficavam batendo como zabumba de São João. No dia seguinte, lancheiras coloridas balançavam no braço das crianças, carregando suco, bolo e algum segredo doce que a mãe tinha colocado às escondidas.

            Chegando na fazenda, tudo era festa. Havia porcos resmungões, galinhas esbaforidas, jumentos pacientes, perus orgulhosos, guinés apressados, vacas dóceis e bezerros com cheirinho de leite fresco. Cada animal era um universo novo. Na hora do lanche, as professoras estendiam uma toalha grande sob a sombra generosa de uma árvore. As crianças se sentavam ao redor, formando um círculo de pureza tão bonito que até o vento parava para ver. Antes de comerem, faziam uma oração de agradecimento — pelo dia, pelos amigos, pelos alimentos, pela alegria tão grande de ser criança.

            Depois, vinham as brincadeiras: correr, subir em árvore, inventar histórias, colecionar folhas, descobrir o mundo como quem descobre um tesouro. E, no fim da tarde, já com o sol preparando a cama por trás das serras, era hora de voltar. As crianças subiam animadas na carroceria da camionete de um dos pais. Iam empilhadas de felicidade e cansaço, cabelos desarrumados pelo vento, corações cheios de coisas que não se explicam, só se sentem.

            A viagem de volta parecia sempre mais curta. Talvez porque todos voltavam adormecendo, embalados pela certeza de que um dia bonito tinha sido vivido.

            Naquela Santana do Ipanema, aprender era um ato de amor. E ser criança… ah, ser criança ali era ser dono da rua, do riso, do instante e da esperança. Era viver num tempo em que as professoras eram como mães e a escola era como casa.

            E quem viveu aquilo guarda até hoje, no fundo da memória, o cheiro de mato, o brilho dos patinhos amarelos e a voz suave de quem dedicou a vida a ensinar:

— “Chove chuvinha…”

quinta-feira, dezembro 04, 2025

O DIA EM QUE O MUNDO COUBE EM SANTANA DO IPANEMA

              Ser criança em Santana do Ipanema nos anos de 1970 era viver entre o barro quente das ruas, os becos que guardavam segredos e o rio que ensinava lições de aventura. Mas havia um dia que não se parecia com nenhum outro. Um dia em que o mundo inteiro parecia caber dentro da pequena cidade sertaneja: 21 de junho de 1970, final da Copa do Mundo.

            Junho sempre fora mês de fogueiras, milho assado e bandeirolas balançando no vento frio que vinha da Serra. As crianças esperavam São João como quem espera uma festa de aniversário. Mas naquele ano, o clima parecia diferente. Era como se o povo estivesse aguardando dois santos: São João… e o futebol brasileiro.

            O Brasil entraria em campo para tentar o tricampeonato. E o técnico era um alagoano — Zagalo, orgulho que abraçava o estado inteiro.

A Cidade que parou

            Quando o relógio marcou três da tarde em Santana, meio-dia no México, a cidade silenciou. As crianças, que normalmente corriam descalças pelas ruas, naquele dia ficaram dentro de casa, grudadas nos rádios que chiavam. O silêncio era tão forte que parecia que até o vento tinha parado para ouvir a narração.

E então… GOL!

            As portas das casas se abriram de repente. Era grito, era riso, era o Brasil inteiro dentro de cada santanense. Houve também o instante do suspiro atravessado, o grunhido de decepção quando o México marcou. Mas ninguém desistiu: o povo brasileiro nunca desiste.

Os Homens que Foram Ver o Mundo Pela TV

            Televisão em Santana praticamente não existia. Era luxo, era coisa rara, bicho que ninguém quase via. Por isso, alguns comerciantes e políticos se reuniram e decidiram pegar a estrada de poeira até Dois Riachos, rumo ao sítio localizado na região conhecida como Pai Mané. Lá, numa grande residência da senhora Maria da Glória, filha de dona Sinhá, santanense, havia o milagre moderno: uma televisão.

            Os carros partiram como quem vai a uma romaria. Ao chegarem, foram recebidos pela dona da casa, e os santanenses se espremiam diante da tela pequena, como se o mundo fosse caber inteiro ali. E coube. Ali eles viram Pelé voar, Gérson distribuir o jogo, Jairzinho correr como um raio e Carlos Alberto Torres marcar um dos gols mais bonitos da história.

A Volta Triunfal

            Quando retornaram já era noite e Santana parecia outra cidade. Os foguetes brilhavam fortes, a praça estava tomada, e o ar cheirava a alegria, suor, milho e vitória. Ali, naquele pedaço de chão, o povo dançava, se abraçava, sorria como se cada um tivesse feito parte do time. Foi a noite em que Santana do Ipanema, assim como o Brasil inteiro, comemorou não apenas um título. Comemorou ser brasileiro.

quarta-feira, dezembro 03, 2025

A IGREJA NO CORAÇÃO DA INFÂNCIA

           Na Santana do Ipanema dos anos de 1960 e 1970, o mundo das crianças era pequeno em tamanho, mas enorme em significado. A família, a escola e a igreja formavam um triângulo perfeito, onde cada lado sustentava o outro, organizando os dias, as rotinas e até os sonhos de quem crescia naquele pedaço quente de Alagoas. No meio desse triângulo havia sempre a rua: os becos poeirentos, o rio Ipanema e as aventuras que faziam o tempo correr mais depressa.

            A família era presença constante. Era quem acordava cedo, quem chamava para o café, quem mandava fazer as tarefas e quem espalhava conselhos sobre o certo e o errado. Mas havia um outro lugar — grande, solene e cheio de mistério — que dava forma à vida comunitária: a Igreja Matriz de Senhora Santana. A igreja organizava o tempo. Organizava as festas, as missas, os domingos, o calendário inteiro da cidade. Nada acontecia sem que o sino da matriz anunciasse: era hora da missa, da procissão, da novena, da quermesse ou da tão esperada primeira comunhão.

            E era justamente a primeira comunhão que transformava o cotidiano das crianças.

            Uma vez por semana, no contraturno da escola, os meninos e meninas caminhavam até a matriz carregando um caderno e um lápis. Sentavam nos bancos de madeira e esperavam a catequista — a professora Letícia Santana, que também ensinava no Grupo Padre Francisco Correia. Ela falava com voz calma, mostrava a Bíblia, ensinava cantos, explicava parábolas, contava histórias que misturavam fé e moral. A igreja tinha seus rituais, e todos sabiam que os sacramentos eram passos obrigatórios para formar “gente de bem”: batismo, eucaristia, confirmação… Cada passo era acompanhado não só pela fé, mas pela comunidade inteira.

            Quando era anunciado o dia da primeira comunhão, parecia que a cidade se movia ao mesmo tempo. As mães eram chamadas à matriz para receber as orientações. E dali começava outra romaria: o armarinho das Irmãs Marques para os catecismos e velas; as Pernambucanas ou a loja de Gracita para escolher os tecidos; a sapataria de seu Marinheiro para comprar os sapatos Vulcabrás; e por fim, a costureira, que receberia o tecido branco e azul com a missão de confeccionar a roupa do grande dia. Depois disso tudo, ainda faltava passar na doceira, porque criança que comunga também precisa celebrar.

            Para os pequenos, porém, havia um momento que enchia o peito de medo: a confissão. Um dia antes da comunhão, a fila na sacristia serpenteava. O padre Cirilo sentado de um lado; do outro, cada criança ajoelhada, de mãos suadas, coração disparado, tentando se lembrar de pecados que nem sabia se tinha. Na noite anterior, muitos não dormiam, pensando no que dizer. Que pecados uma criança podia ter?

            Quando o padre perguntava:

— Conte seus pecados, era preciso responder. Mesmo sem saber o que era pecado, mesmo sem entender por que aquilo tudo era tão grande. E então surgiam pecados inventados, bobos, mas ditos com a seriedade de quem acreditava que o céu e o inferno dependiam daquelas palavras:

— Eu jogo pedra no beco do Panema, confessava um menino, tremendo.

            O padre ouvia, fazia uma pausa solene e decretava:

— Reze dois Pai-Nossos e duas Ave-Marias. E não peque mais.

            Apesar do medo, aquele ritual ensinava — talvez mais pelo sentimento do que pelas palavras — que havia responsabilidade, compromisso, pertencimento. Ensinar que ações tinham peso. Que a vida em comunidade exigia respeito, ordem, convivência. A igreja, com seus ritos e exigências, era também um fio invisível que costurava a cidade inteira: unia as famílias, marcava o ritmo do ano, guiava as crianças para a vida adulta e, sem que elas percebessem, construía uma base moral que ecoaria para sempre.

            Por isso, quem cresceu na Santana daqueles tempos lembra não apenas do catecismo, das roupas brancas e azul ou da fila da confissão. Lembra de como a igreja organizava a vida. Lembra da sensação de fazer parte de algo maior. Lembra, principalmente, da comunhão — não só com Deus, mas com a comunidade inteira.

            A primeira comunhão não era apenas um sacramento. Era um rito de passagem, uma aula de vida, uma pequena engrenagem do grande relógio social que a igreja mantinha funcionando.

            E assim, entre o som do sino, o cheiro das roupas novas, o conselho da professora, o olhar sério do padre e o amor das mães, cresciam as crianças de Santana do Ipanema — moldadas pelo tempo, pela fé e pelo sentimento de que a cidade, unida pela igreja, era uma grande família.

terça-feira, dezembro 02, 2025

QUANDO A FÉ DESCE DA SERRA: A CHEGADA DE FREI DAMIÃO EM SANTANA DO IPANEMA

 

            A fé no sertão sempre teve o brilho de uma lamparina acesa no silêncio da noite: pequena, mas capaz de iluminar longe. Em Santana do Ipanema, nos anos de 1970, essa luz era ainda mais forte. O povo santanense sabia que, em meio ao calor, à seca e às durezas da vida, era na devoção que se encontrava alívio, rumo e coragem. A cidade cresceu assim: sustentada por mãos calejadas e corações que batiam no compasso da esperança.

            No ponto mais alto do centro, a Matriz de Senhora Santana vigiava tudo. Da porta principal, via-se o movimento da feira, o sobe e desce das ladeiras, as casas alinhadas como contas de um terço. Mas quem subia até o relógio da torre via ainda mais: enxergava o horizonte larguíssimo do sertão, os cochos de palma, o rio Ipanema serpenteando tímido, as serras emoldurando a vida. Aquele alto era quase um altar, e quem olhava lá de cima sentia que Deus olhava de volta.

            O pároco, Padre Cirilo, era figura conhecida. De estatura mediana, o brilho da careca chamando a atenção até dos meninos brincalhões, a batina sempre um pouco amarrotada, e a barriga que denunciava os almoços generosos das beatas. Carismático e firme, era respeitado por todos. Sabia ouvir, aconselhar, corrigir — e sabia também acolher. Sua casa era sempre arrumada pelas beatas diligentes, que cuidavam de cada detalhe como quem prepara o lar para receber o próprio Cristo.

            E foi justamente ali, naquela residência simples e sagrada, que tantas vezes ficou hospedado um dos homens mais esperados pelo povo nordestino: Frei Damião de Bozzano. Quando se anunciava que ele chegaria, a notícia corria mais rápido que vento de trovoada. A cidade mudava de ritmo. As famílias se preparavam como para uma festa de santo. As mães ajeitavam as roupas das crianças, os homens paravam o serviço mais cedo, e até quem pouco ia à igreja sentia o puxão da fé.

            No dia da chegada, a rua do padre Cirilo não comportava tanta gente. A multidão se esparramava pela calçada, pela praça, pelas portas das casas vizinhas. Muitos queriam apenas olhar de longe. Outros desejavam tocar a mão do frei. Havia quem esperasse por uma cura, por um conselho, por um milagre. As beatas organizavam senhas para garantir que todos pudessem entrar, ao menos por alguns minutos, e receber a bênção tão esperada.

            As crianças da rua do Sebo corriam pela praça, brincando entre si, mas sempre com um olho voltado para a igreja. Sabiam que, quando Frei Damião aparecesse, a brincadeira terminaria, porque até menino arteiro respeitava aquele momento. As mães seguravam firme seus filhos pelos braços, algumas com lágrimas nos olhos, pedindo ajuda para problemas que só o coração de mãe entende: a criança que não aprendia direito na escola, o filho com doença que médico nenhum explicava, o pequeno que não se dava bem com os colegas. Para cada um, o frei oferecia uma oração, uma palavra curta, um olhar profundo — e isso bastava.

            Na igreja, o confessionário se enchia como nunca. A fila parecia não ter fim, dobrando corredores, ocupando bancos, chegando quase à porta da matriz. Frei Damião ouvia cada história com paciência franciscana. Muitos saíam dali com o rosto lavado de lágrimas, mas com o peito limpo, como se uma pedra tivesse sido removida de dentro.

            A presença dele irradiava sobre toda a cidade. O comércio fervilhava, gente da região inteira chegava de pau-de-arara, de bicicleta, de cavalo. Barracas eram montadas na praça. O cheiro de bolo de milho, tapioca, café forte e suor de romeiro se misturava no ar quente. Cada pessoa trazia consigo um pedido, uma promessa, um agradecimento.

            Mas, no fim, o maior presente não era a cura que alguns diziam ter recebido, nem o conselho especial, nem a simples oportunidade de ver o frei de perto. O que realmente ficava era algo maior: a lembrança viva da fé sertaneja. A certeza de que o povo do sertão, apesar das secas e das dores, tinha algo inquebrável dentro de si. Uma força que vinha de Deus, dos santos, da devoção pura e simples — aquela que nasce no coração e se espalha como brasa em palha seca.

            Quando Frei Damião partia, a cidade voltava ao normal, mas algo permanecia aceso. As crianças lembravam das bênçãos, os pais guardavam no peito as palavras ditas, e a Matriz de Senhora Santana continuava firme no alto, olhando por todos, testemunha silenciosa da fé que nunca se apagou.

Porque no sertão, mais que a terra rachada, mais que o sol ardente, é a fé que sustenta o povo. E Santana do Ipanema, naquele tempo e para sempre, foi um chão onde esse milagre floresceu.

segunda-feira, dezembro 01, 2025

QUANDO A INFÂNCIA ERA DONA DAS RUAS DE SANTANA DO IPANEMA

 

           Naquele tempo, Santana do Ipanema parecia maior do que o mundo. Cada rua tinha seu próprio segredo, cada esquina guardava uma aventura diferente, e as crianças eram donas de tudo: do barulho, da poeira, do riso solto, das invenções improváveis.

            Os carrinhos artesanais surgiam de tábuas esquecidas, rolamentos encontrados sabe-se lá onde e muita imaginação. Desciam as ladeiras como verdadeiros trovões de madeira, sem freio, sem medo, apenas a coragem no peito e o corpo preparado para servir de para-choque. Depois vinham os arranhões, o ardor do mertiolate laranja, o “assopra que passa”, e logo o menino queria descer de novo.

            O cinema acontecia dentro de caixas de sapato, iluminado pela lanterna e pela fantasia. A bola rolava entre as ilhas que o Rio Ipanema formava na estiagem, e as carteiras de cigarro viravam dinheiro nos mercados imaginários onde se comprava bala, goma e até sonhos. Nas margens do rio, as crianças aprendiam a nadar enfrentando enchentes e secas, cada fase trazendo seu próprio encanto: ora correnteza forte, ora pedras quentes ao sol onde se sentava para secar o corpo.

            A feira era um espetáculo à parte. Andar entre barracas e ouvir o pregão era uma viagem: cheiro de tempero, de fruta madura, de tecido novo, tudo misturado com o vozerio que só a feira de Santana sabia fazer. As festas de São João, de São Cristóvão e da padroeira enchiam o ar de fogueira, bandeirinha e sanfona, iluminando a cidade e acendendo no peito o tipo de alegria que não se explica, só se sente.

            Nos dias de chuva grossa, a criançada corria para debaixo das bicas d’água. Era ali que se descobria a força do céu: água descia com ímpeto, varria a rua e lambuzava todo mundo de gargalhada. E, entre uma trovoada e outra, alguém sempre gritava: “É só o trovão fechando a porta!”

            As brincadeiras nunca tinham hora pra acabar. Jogar ximbra em todas as modalidades — triângulo, buraco e o que mais inventassem. Corridas apostadas que valiam um punhado de balas. O cavalo de madeira riscando o chão poeirento. Pular corda até a perna pedir arrego. Polícia e ladrão entre as sombras dos muros. Arminhas de espoleta fazendo estalo que ecoava na rua inteira. Dias inteiros vividos lá fora, sem limite e sem relógio, com o sol marcando o tempo.

            No domingo, a missa juntava todo mundo, e as aulas durante a semana vinham com respeito sério aos professores, que eram quase figuras mágicas — sabiam tudo, resolviam tudo. O rádio tocava os sucessos dos anos 60 e 70, embalando tarefas, cochilos e sonhos. E os desfiles cívicos enchiam a cidade de orgulho, chapéu engomado, roupa limpa e o peito estufado de importância.

            Assim cresciam as crianças de Santana do Ipanema: livres, inventivas, valentes e curiosas. Cada rua, cada bairro, cada grupo tinha sua própria história — e todas, tecidas juntas, faziam o tecido vivo de uma cidade sertaneja que soube criar seus filhos com simplicidade, coragem e afeto.

             E quem viveu aquilo carrega até hoje a certeza de que, naquele chão quente do sertão, a infância era uma festa que nunca terminava completamente. Ela fica guardada, quieta, mas basta fechar os olhos para que tudo volte: o rio, o carrinho, o cheiro da feira, o riso dos amigos, e a alegria sem medida de ser criança em Santana do Ipanema.

domingo, novembro 30, 2025

O JEEP DE MADEIRA

 

            Um pedaço de madeira, um pequeno serrote, um martelo, alguns pregos e uma ideia luminosa na cabeça. Era tudo o que uma criança precisava para transformar a tarde simples em aventura. Naquele tempo, na Santana do Ipanema das décadas de 1960 e 1970, brincar era um ato de criação — e de mundo.

            O jeep começava ali, na imaginação. Para os pneus, ninguém hesitava: um chinelo Havaianas encontrado no beco de dona Otília resolvia. O beco grande e meio esquecido, cheio de mato, era um tesouro. Muitos jogavam ali o que não queriam mais, e as crianças sabiam enxergar valor no que os adultos descartavam. Bastava caminhar por uma das trilhas que levavam até a rua de baixo, e dali para o rio Ipanema, que novos materiais surgiam como mágica no caminho. As molas? Uma lata de óleo de cozinha servia. Se não houvesse lata, tiras de metal achadas no chão da serralheria funcionavam. Era tudo matéria-prima para sonhos.

            E a serralheria de seu Antônio Dantas era o coração dessa fábrica imaginária. Pequena, barulhenta, encharcada de cheiro de madeira e cavacos, ficava bem na rua nova, quase fechando o beco de seu Felisdoro. Aquele beco, famoso pelas casas de aluguel de dona Bila e de seu Felisdoro, acolhia famílias recém-chegadas à cidade, gente em busca de novas possibilidades. Por isso, talvez, o lugar sempre parecia cheio de vida — de vozes, risos e sonhos.

            Seu Antônio Dantas, com seu avental de couro e gestos tranquilos, era mais que serralheiro: era guardião da inventividade da criançada. Deixava que entrassem, que pegassem restos de madeira, pedaços de compensado, sobras de metal. E mais ainda: emprestava ferramentas pequenas, explicava como serrar, como lixar, como pregar sem machucar o dedo. Tinha paciência. Tinha afeto.

            Era ali, naquele espaço simples, que nascia a linha de montagem dos brinquedos da rua do Sebo.

            As crianças saíam pela porta da serralheria com seus jeeps, caminhões e carros improvisados, cada um carregando um pedaço do orgulho de quem fez com as próprias mãos. Depois, vinham as expedições: subiam e desciam as ruas da cidade, puxando seus carros por um barbante, em filas intermináveis. Passavam por paus, pedras, paralelepípedos, trechos de barro seco. E de suas bocas vinham os sons que moviam o mundo:

— Brummm, brummm! Bibi! Bibi!

            Era como se os carros ganhassem alma, como se a vida pulsasse cortando o vento.

            A comunidade olhava e sorria. Cada adulto conhecia aquelas crianças, sabia de quem eram filhas, onde moravam, como cresciam. Havia cuidado, havia presença. As crianças tinham liberdade — e tinham quem olhasse por elas. E isso fazia toda diferença.

 

            Cada dia era uma invenção nova. Um brinquedo novo. Uma brincadeira que nascia sem precisar de pilha, tela ou tomada. Bastava o que havia ao redor e um grupo de amigos. O tempo corria devagar, como as águas do Ipanema nas épocas de estiagem, e cada tarde parecia comprida, cheia, eterna.

            Assim era a infância em Santana do Ipanema: criativa, compartilhada, acompanhada. Uma infância que ensinava que o brincar não era simples passatempo, mas um jeito bonito de aprender a viver, a imaginar, a cooperar — e a sonhar junto.

UM TABULEIRO DE MEMÓRIAS

                            A infância em Santana do Ipanema não se mede em anos, mede-se em passos. Passos dados na rua Antônio Tavares, ...