Nasci em Maceió, mas foi em Santana do Ipanema que aprendi a ser menino. Cheguei ainda com semanas de vida, embalado pelo aconchego da família que me esperava na travessa Antônio Tavares. Ali havia uma casa grande, pulsante, cheia de vida, ladeada pela dos meus avós paternos: seu Deoclécio, sempre com sua postura de homem sério e trabalhador, e dona Amélia, de olhar firme, coque apertado e carinho pronto para qualquer neto que lhe aparecesse pela porta.
O centro do meu mundo era o armazém de secos e molhados
do meu pai, Zezito, na Barão de Rio Branco. À primeira vista, era apenas uma
mercearia simples; mas para mim, era uma escola completa. Entre sacos de
feijão, rolos de barbante, latas coloridas e o perfume das especiarias, aprendi
a fazer contas antes mesmo de saber escrevê-las no caderno. Aprendi a medir,
pesar, dar o troco, escolher o melhor produto e, sobretudo, a olhar no olho de
quem comprava — porque vender também é confiar.
Mas nada disso impediu que eu fosse criança.
A rua, a escola e a brincadeira tinham tanto espaço
quanto as prateleiras do armazém. Estudei desde os quatro anos na escola de
dona Penina e da professora Maria. Ali, entre cantigas, lições simples e o
quadro-negro que rangia, aprendi as primeiras letras. Depois, no Grupo Escolar
Padre Francisco Correia, com a professora Laura Chagas, conclui o quarto ano,
trazendo comigo não apenas cadernos cheios, mas histórias e travessuras que só
quem estudou em escola pública do interior conhece.
Foi também nesse período que a figura de minha mãe, Maria
do Socorro, começou a ganhar uma força especial na minha formação. Se meu pai
me ensinava o comércio, ela me ensinava o mundo. Sua arte era a palavra escrita
— e era com livros abertos, cadernos rabiscados e diálogos sempre ricos que ela
me empurrava para a leitura e para a escrita. Minha mãe convivia com a elite
intelectual de Santana do Ipanema, discutia literatura, preservava histórias e
registrava em seus escritos uma verdade que ecoa até hoje: Santana do Ipanema é
Terra de Escritores. Esse orgulho, ela não apenas defendia — ela plantava em
mim.
Enquanto isso, meu pai ia e voltava de suas viagens
comerciais, sempre trazendo alguma novidade para vender. E nós, eu e meus
irmãos, transformávamos cada mercadoria numa aventura. Quando veio a carga de
laranjas, seguimos para a feira das frutas. Marcello ao meu lado, vendemos
tudo. No dia do saco de maxixes, fiquei perto do mercado da carne — e ali
descobri que a voz firme vale tanto quanto a coragem de ficar sozinho no meio
da feira. Houve também o dia dos baldes de mel de abelha. Enchemos garrafas de
vidro e saímos de porta em porta. Quem comprava levava o mel, mas nós levávamos
o aprendizado: coragem, comunicação, persistência.
E como esquecer o sábado da rapadura?
Um quarto inteiro da nossa casa tomado por aquele cheiro
doce. Eu e Mércia pegamos a velha carroça de pedreiro, fomos à feira e montamos
nosso pequeno comércio. Ela atendia os fregueses enquanto eu corria de volta
para casa buscar mais mercadoria. A rapadura sumia das nossas mãos como mágica
— e nós ríamos, suados, felizes, sentindo que o mundo podia ser grande, mas
cabia na palma das nossas mãos trabalhadoras.
Nessa rotina, descobri que responsabilidade não rouba a
infância — ela dá forma a ela. Eu brincava, estudava, corria nas ruas,
inventava mundos com meus irmãos. Mas também ajudava, participava, aprendia a
confiar em mim mesmo. A vida adulta pode até ter escolhido outros caminhos para
mim, mas o que aprendi ali ficou como alicerce: disciplina, criatividade,
coragem, respeito pelo esforço e pela palavra dada. E muito disso devo a meus
pais: ao pai que me ensinou o valor do trabalho, e à mãe que me ensinou o poder
das palavras.
Hoje, ao revisitar essas memórias, percebo algo ainda
mais profundo: Educar uma criança não é afastá-la do mundo, mas deixá-la
participar dele aos poucos. É permitir que ela seja útil sem deixar de ser
criança. É ensinar responsabilidade sem apagar o brilho curioso do olhar. É
mostrar que trabalho é digno, mas que brincar também é. É lembrar que toda
lição, quando vivida com amor, vira história — e histórias duram para sempre.
E estas são as minhas.
As que hoje divido com vocês, com o mesmo sabor doce de
rapadura que marcou minha infância em Santana do Ipanema — terra que minha mãe,
com sua escrita firme, eternizou como Terra de Escritores.