segunda-feira, dezembro 22, 2025

PELOS CAMINHOS DA FÉ: MEMÓRIAS DE UMA INFÂNCIA RUMO A JUAZEIRO


 

            A fé sempre foi o chão firme do povo sertanejo. Era ela que sustentava os passos, mesmo quando a estrada era longa e o sol parecia não ter piedade. Entre missões, procissões, novenas e rezas baixas ao pé do oratório armado num canto da sala, a religião fazia morada permanente nas casas e nos corações. As imagens dos santos observavam em silêncio o vai-e-vem da vida, enquanto os adultos cumpriam seus rituais e, sem perceber, ensinavam às crianças que crer também era uma forma de caminhar.

            Lá longe, em Juazeiro do Norte, morava a fé em forma de homem: Padre Cícero. Seu nome era contado como história, cantado como bendito e repetido como promessa. Todos os anos, um bom número de santanenses deixava sua terra para pagar graças alcançadas ou pedir outras tantas. Iam de todo jeito: a pé, em grupos de romeiros que se formavam pelas estradas do sertão, enfrentando dias e noites, calor e frio, chuva e poeira. Homens, mulheres e crianças seguiam em cortejo, rezando, cantando e sofrendo juntos, porque a dor dividida parecia menor quando se caminhava por fé.

            Alguns seguiam no pau de arara, caminhões adaptados com bancos de madeira, cobertos por lona grossa. Era mais rápido, diziam, mas não menos cansativo. O corpo doía, a poeira entrava pelos olhos, o sol queimava a pele e o balanço da estrada castigava os ossos. Ainda assim, ninguém reclamava. Cada sacolejo era oferta, cada cansaço virava promessa.

            Em 1969, meus pais decidiram seguir para Juazeiro. Não iam a pé nem de caminhão: iam num jeep Toyota, orgulho do meu pai. Queriam pagar promessa, conhecer os lugares santos e, talvez, reforçar a esperança. Entre meus irmãos, fui o escolhido para acompanhar aquela aventura. Também foi conosco um vizinho, amigo antigo da família, desses que partilham silêncio e conversa sem esforço.

            Foi minha primeira viagem para tão longe. A estrada de barro parecia não ter fim. O carro levantava poeira, o sol entrava pelas janelas, e o tempo se arrastava. Para uma criança, dias de viagem são eternidades. O corpo cansava, a curiosidade despertava. Lembro de placas à beira do caminho, nomes de cidades que soavam grandes demais para mim. Uma delas dizia “Belém”. Perguntei à minha mãe se era ali que Jesus tinha nascido. Ela sorriu, talvez pela inocência, talvez pela fé que já germinava em mim sem que eu soubesse.

            Quando chegamos a Juazeiro, ficamos num hotel simples. O quarto, hoje, é só uma sombra na memória, mas o sentimento permanece inteiro. A primeira coisa que fizemos foi ir à igreja. A igreja onde repousava o corpo do Padre Cícero. Minha mãe ajoelhou-se, rezou demoradamente. Eu observava tudo em silêncio, sentindo que aquele lugar era diferente, pesado de história, leve de esperança.

            Depois fomos à feira. Cores, vozes, cheiros. Minha mãe comprou um busto do Padre Cícero, que por muitos anos ocupou lugar de respeito lá em casa, como se fosse um parente querido. Comprou também uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, pequena, mas carregada de devoção.

            Visitamos ainda o canteiro de obras da grande estátua do “Padim”. Naquele tempo, só o busto estava pronto. Subimos pelos arredores, tiramos fotos, compramos lembranças. Para mim, tudo era grande: a cidade, a fé, o homem que se tornava santo na boca do povo.

            No dia seguinte, participamos das missas, misturados a tantos outros romeiros. Gente simples, rostos marcados pelo sol, olhos cheios de esperança. Ali, entendi — ainda que de forma confusa — que a fé não mora só nas igrejas, mas nas estradas, no cansaço, na poeira, na coragem de quem caminha dias e dias por acreditar.

            Voltamos para casa cansados, mas felizes. A viagem terminou, mas nunca foi embora de mim. Ficou guardada nas pequenas lembranças, nas perguntas inocentes, no busto do Padre Cícero na sala, na certeza de que o sertanejo aprende cedo que crer é resistir.

            E até hoje, quando penso em Juazeiro, não vejo apenas uma cidade. Vejo uma estrada longa, um carro levantando poeira, uma criança olhando o mundo pela janela e um povo inteiro caminhando, de todo jeito, porque a fé, quando chama, sempre encontra um caminho.


 

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