A fé sempre foi o chão firme do povo sertanejo. Era ela
que sustentava os passos, mesmo quando a estrada era longa e o sol parecia não
ter piedade. Entre missões, procissões, novenas e rezas baixas ao pé do
oratório armado num canto da sala, a religião fazia morada permanente nas casas
e nos corações. As imagens dos santos observavam em silêncio o vai-e-vem da
vida, enquanto os adultos cumpriam seus rituais e, sem perceber, ensinavam às
crianças que crer também era uma forma de caminhar.
Lá longe, em Juazeiro do Norte, morava a fé em forma de
homem: Padre Cícero. Seu nome era contado como história, cantado como bendito e
repetido como promessa. Todos os anos, um bom número de santanenses deixava sua
terra para pagar graças alcançadas ou pedir outras tantas. Iam de todo jeito: a
pé, em grupos de romeiros que se formavam pelas estradas do sertão, enfrentando
dias e noites, calor e frio, chuva e poeira. Homens, mulheres e crianças
seguiam em cortejo, rezando, cantando e sofrendo juntos, porque a dor dividida
parecia menor quando se caminhava por fé.
Alguns seguiam no pau de arara, caminhões adaptados com
bancos de madeira, cobertos por lona grossa. Era mais rápido, diziam, mas não
menos cansativo. O corpo doía, a poeira entrava pelos olhos, o sol queimava a
pele e o balanço da estrada castigava os ossos. Ainda assim, ninguém reclamava.
Cada sacolejo era oferta, cada cansaço virava promessa.
Em 1969, meus pais decidiram seguir para Juazeiro. Não
iam a pé nem de caminhão: iam num jeep Toyota, orgulho do meu pai. Queriam
pagar promessa, conhecer os lugares santos e, talvez, reforçar a esperança.
Entre meus irmãos, fui o escolhido para acompanhar aquela aventura. Também foi
conosco um vizinho, amigo antigo da família, desses que partilham silêncio e
conversa sem esforço.
Foi minha primeira viagem para tão longe. A estrada de
barro parecia não ter fim. O carro levantava poeira, o sol entrava pelas
janelas, e o tempo se arrastava. Para uma criança, dias de viagem são
eternidades. O corpo cansava, a curiosidade despertava. Lembro de placas à
beira do caminho, nomes de cidades que soavam grandes demais para mim. Uma
delas dizia “Belém”. Perguntei à minha mãe se era ali que Jesus tinha nascido.
Ela sorriu, talvez pela inocência, talvez pela fé que já germinava em mim sem
que eu soubesse.
Quando chegamos a Juazeiro, ficamos num hotel simples. O
quarto, hoje, é só uma sombra na memória, mas o sentimento permanece inteiro. A
primeira coisa que fizemos foi ir à igreja. A igreja onde repousava o corpo do
Padre Cícero. Minha mãe ajoelhou-se, rezou demoradamente. Eu observava tudo em
silêncio, sentindo que aquele lugar era diferente, pesado de história, leve de
esperança.
Depois fomos à feira. Cores, vozes, cheiros. Minha mãe
comprou um busto do Padre Cícero, que por muitos anos ocupou lugar de respeito
lá em casa, como se fosse um parente querido. Comprou também uma imagem de
Nossa Senhora Aparecida, pequena, mas carregada de devoção.
Visitamos ainda o canteiro de obras da grande estátua do
“Padim”. Naquele tempo, só o busto estava pronto. Subimos pelos arredores,
tiramos fotos, compramos lembranças. Para mim, tudo era grande: a cidade, a fé,
o homem que se tornava santo na boca do povo.
No dia seguinte, participamos das missas, misturados a
tantos outros romeiros. Gente simples, rostos marcados pelo sol, olhos cheios
de esperança. Ali, entendi — ainda que de forma confusa — que a fé não mora só
nas igrejas, mas nas estradas, no cansaço, na poeira, na coragem de quem
caminha dias e dias por acreditar.
Voltamos para casa cansados, mas felizes. A viagem
terminou, mas nunca foi embora de mim. Ficou guardada nas pequenas lembranças,
nas perguntas inocentes, no busto do Padre Cícero na sala, na certeza de que o
sertanejo aprende cedo que crer é resistir.
E até hoje, quando penso em Juazeiro, não vejo apenas uma
cidade. Vejo uma estrada longa, um carro levantando poeira, uma criança olhando
o mundo pela janela e um povo inteiro caminhando, de todo jeito, porque a fé,
quando chama, sempre encontra um caminho.

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