segunda-feira, dezembro 15, 2025

UM TABULEIRO DE MEMÓRIAS

            


             A infância em Santana do Ipanema não se mede em anos, mede-se em passos. Passos dados na rua Antônio Tavares, a rua do Sebo, onde cada porta aberta era uma lição silenciosa e cada som era uma aula sem caderno. A criança aprendia antes mesmo de saber que estava aprendendo. Aprendia com o cheiro da terra molhada depois da chuva forte de verão, quando os trovões pareciam conversar com os telhados e a água corria apressada pelas calhas, como se também tivesse compromissos. Aprendia com o calor das tardes de dezembro, com o suor escorrendo e o tempo passando devagar, ensinando que o trabalho exige paciência.

            Logo cedo, no caminho da padaria, o canto estridente dos pássaros engaiolados anunciava o dia. O galo-de-campina, em frente à alfaiataria de Juca, cantava como se costurasse o tempo com a própria voz. Dentro da casa-oficina, o zig-zag da máquina de costura respondia ao canto do pássaro. Era música de trabalho. Juca Alfaiate transformava pano em destino: ternos para casamentos, formaturas e despedidas. As crianças observavam os manequins alinhados, vestidos de sonhos alheios, e aprendiam que as mãos humanas eram capazes de criar beleza, sustento e identidade.

            Do outro lado da rua, Pedro, na estofaria, ensinava sem palavras que nada precisava ser descartado tão facilmente. Sofás e poltronas ganhavam nova vida, assim como a cidade ganhava movimento. A criança entendia, ainda que sem nomear, o valor do reaproveitar, do cuidar, do manter vivo o que parecia gasto.

            Descendo em direção ao rio Ipanema, estava Bastos, o homem do couro. Seu ofício tinha cheiro forte e som de faca cortando matéria bruta. Jibões, selas, alpargatas — o sertão passava por suas mãos. Os pássaros cantavam em gaiolas, alegrando os ouvidos humanos, enquanto a criança começava, ainda que timidamente, a perceber que o mundo carrega contradições: beleza e prisão, canto e silêncio, trabalho e limites.

            Mais adiante, a gráfica de Cajueiro pulsava como um coração mecânico. Tipos de metal, papel, tinta preta nos aventais. Ali nasciam notas fiscais, calendários, anúncios. A criança via as letras ganharem forma e aprendia que o trabalho também comunica, registra, organiza o tempo e a vida coletiva.

            Sentado à porta, o senhor Rêgo trançava palhinha com a calma de quem sabe que o saber só permanece se for partilhado. Assim como Antônio Dantas, na marcenaria, ele deixava as crianças se aproximarem, ajudarem, aprenderem. Não era apenas madeira ou palha: era o ensinamento de que o trabalho digno se transmite pelo exemplo, pelo gesto paciente, pela confiança no outro.

            A rua do Sebo era uma escola sem paredes. A criança crescia entendendo que o mundo se constrói todos os dias, com esforço, criatividade e cooperação. Mesmo sem saber que o tempo traria máquinas e mudanças, ela guardava no corpo e na memória a certeza de que o trabalho humano tem alma. Hoje, ao revisitar essas ruas pela lembrança, entende-se que conviver com os meios de produção não era apenas observar o ganha-pão dos adultos. Era aprender sobre pertencimento, responsabilidade e futuro. Era descobrir que cada profissão carrega uma história e que toda cidade se sustenta nas mãos de quem cria, conserta, imprime, costura e ensina.

            A infância em Santana do Ipanema foi isso: um tabuleiro de memórias onde cada casa era uma peça, cada trabalhador um mestre, e cada criança, sem perceber, já ensaiava os passos do mundo.

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UM TABULEIRO DE MEMÓRIAS

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