No sertão, a fé não mora apenas nas igrejas: ela caminha
descalça pelas ruas de barro, repousa nos terços pendurados atrás das portas e
se espalha como cheiro de café quente ao amanhecer. É uma fé aprendida antes
mesmo das palavras, passada no colo das mães, no conselho dos mais velhos, no
gesto simples de fazer o sinal da cruz antes de sair de casa.
O povo nordestino nasceu do encontro — e muitas vezes do
choque — entre povos diversos. Do indígena, herdou o respeito pela natureza, o
conhecimento das plantas, a leitura do vento e dos silêncios da mata. Do
africano, trouxe a força do sagrado que dança, canta, incorpora e cura; a
certeza de que o corpo também reza e que a palavra tem poder quando é dita com
verdade. Do europeu, especialmente do português, vieram os santos, as
procissões, as ladainhas, as promessas feitas em noites de aflição. Tudo isso se
misturou, como rio que recebe outros rios, formando uma religiosidade própria,
profunda, resistente.
Em Santana do Ipanema dos anos 1960 e 1970, a cidade
ainda aprendia a ser cidade. As ruas sem calçamento levantavam poeira no verão
e lama no inverno. O mato insistia em crescer perto das casas, e o rio Ipanema
era quintal, parque e escola da infância. Ali, entre brincadeiras e mergulhos,
também morava o medo: o medo das cobras, habitantes antigas daquele chão quente
e pedregoso.
As mães sabiam. Sabiam que o mundo guarda perigos
invisíveis e outros bem visíveis, rastejando silenciosos. Por isso, além dos
conselhos e dos olhos atentos, buscavam proteção onde sempre buscaram: na fé.
Era então que entrava em cena a benzedeira, o curador, o rezador — figuras que
uniam oração, ritual e tradição. Eles não apenas benziam: reafirmavam um pacto
coletivo de cuidado.
Lembro como se fosse agora daquela Sexta-feira Santa. O
dia ainda engatinhava quando fomos chamados para junto da cisterna. O silêncio
era respeitoso, quase solene. Nosso pai chegou acompanhado de um homem estranho
aos nossos olhos de criança, mas antigo no saber. Ele trazia uma caixa que
carregava mistério e temor, ramos de pinhão-roxo, água benta, um terço gasto
pelo uso e um gole de cachaça, que não era vício, era instrumento.
Um a um, fomos benzidos. As palavras rezadas misturavam
latim mal lembrado, devoção católica, conhecimento da mata e crença no
invisível. Ali não havia contradição: tudo era fé. Segundo ele, a partir
daquele momento, as cobras nos reconheceriam como protegidos. Fugiriam ao nos
sentir. E, se por acaso cruzássemos com uma, ela é que não resistiria.
Saímos dali mais leves. Talvez mais corajosos. Talvez
mais obedientes aos limites que nos eram impostos. Ou simplesmente mais
seguros, embalados pela certeza de que alguém — santo, reza, natureza ou todos
juntos — cuidava de nós.
Hoje, ao olhar para trás, não sei dizer se aquela
benzedura nos protegia de verdade ou se nos ensinava a respeitar o espaço, a
escutar os alertas da vida. Mas sei que ela nos ligava a algo maior: a uma
cultura que não separa fé de cotidiano, que transforma medo em ritual e
esperança em herança.
Assim é o Nordeste: um território onde o sagrado se
reinventa todos os dias, onde a fé não é apenas crença, é memória, identidade e
resistência. Uma fé que não se explica — se sente.

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