terça-feira, dezembro 23, 2025

A SEXTA-FEIRA EM QUE FOMOS BENZIDOS



 

            No sertão, a fé não mora apenas nas igrejas: ela caminha descalça pelas ruas de barro, repousa nos terços pendurados atrás das portas e se espalha como cheiro de café quente ao amanhecer. É uma fé aprendida antes mesmo das palavras, passada no colo das mães, no conselho dos mais velhos, no gesto simples de fazer o sinal da cruz antes de sair de casa.

            O povo nordestino nasceu do encontro — e muitas vezes do choque — entre povos diversos. Do indígena, herdou o respeito pela natureza, o conhecimento das plantas, a leitura do vento e dos silêncios da mata. Do africano, trouxe a força do sagrado que dança, canta, incorpora e cura; a certeza de que o corpo também reza e que a palavra tem poder quando é dita com verdade. Do europeu, especialmente do português, vieram os santos, as procissões, as ladainhas, as promessas feitas em noites de aflição. Tudo isso se misturou, como rio que recebe outros rios, formando uma religiosidade própria, profunda, resistente.

            Em Santana do Ipanema dos anos 1960 e 1970, a cidade ainda aprendia a ser cidade. As ruas sem calçamento levantavam poeira no verão e lama no inverno. O mato insistia em crescer perto das casas, e o rio Ipanema era quintal, parque e escola da infância. Ali, entre brincadeiras e mergulhos, também morava o medo: o medo das cobras, habitantes antigas daquele chão quente e pedregoso.

            As mães sabiam. Sabiam que o mundo guarda perigos invisíveis e outros bem visíveis, rastejando silenciosos. Por isso, além dos conselhos e dos olhos atentos, buscavam proteção onde sempre buscaram: na fé. Era então que entrava em cena a benzedeira, o curador, o rezador — figuras que uniam oração, ritual e tradição. Eles não apenas benziam: reafirmavam um pacto coletivo de cuidado.

            Lembro como se fosse agora daquela Sexta-feira Santa. O dia ainda engatinhava quando fomos chamados para junto da cisterna. O silêncio era respeitoso, quase solene. Nosso pai chegou acompanhado de um homem estranho aos nossos olhos de criança, mas antigo no saber. Ele trazia uma caixa que carregava mistério e temor, ramos de pinhão-roxo, água benta, um terço gasto pelo uso e um gole de cachaça, que não era vício, era instrumento.

            Um a um, fomos benzidos. As palavras rezadas misturavam latim mal lembrado, devoção católica, conhecimento da mata e crença no invisível. Ali não havia contradição: tudo era fé. Segundo ele, a partir daquele momento, as cobras nos reconheceriam como protegidos. Fugiriam ao nos sentir. E, se por acaso cruzássemos com uma, ela é que não resistiria.

            Saímos dali mais leves. Talvez mais corajosos. Talvez mais obedientes aos limites que nos eram impostos. Ou simplesmente mais seguros, embalados pela certeza de que alguém — santo, reza, natureza ou todos juntos — cuidava de nós.

            Hoje, ao olhar para trás, não sei dizer se aquela benzedura nos protegia de verdade ou se nos ensinava a respeitar o espaço, a escutar os alertas da vida. Mas sei que ela nos ligava a algo maior: a uma cultura que não separa fé de cotidiano, que transforma medo em ritual e esperança em herança.

            Assim é o Nordeste: um território onde o sagrado se reinventa todos os dias, onde a fé não é apenas crença, é memória, identidade e resistência. Uma fé que não se explica — se sente.


 

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