sexta-feira, novembro 07, 2025

CANDINHO E O RIO DE AREIA

               Nos idos de 1940, em Santana do Ipanema, o sertão alagoano fervia sob o sol que parecia nunca descansar. O Rio Ipanema, que dava nome e vida à cidade, cortava o chão pedregoso como uma cicatriz antiga — ora cheio e impetuoso nas raras chuvas, ora seco e manso a maior parte do ano, transformado num rio de areia grossa.

                Mas mesmo quando o leito se esvaziava, o povo não perdia a esperança. Cavavam cacimbas na areia, e delas brotava uma água salobra, meio doce, meio amarga, que matava a sede dos homens, das cabras e do gado. Era dessa água que vivia Cândido — ou Candinho, como todos o chamavam.

                Candinho era um jovem miúdo, de corpo enxuto e braços fortes, descendente de africanos, mas já com o sangue misturado às muitas cores do Brasil. Tinha um olhar esperto e um sorriso que aparecia fácil, mesmo quando o trabalho apertava.

                Logo ao nascer do dia, o povo de Santana já sabia o som que se aproximava: o bater compassado das patas do jumento e o tinir das ancorotas balançando na cangalha. Candinho vinha, firme, enfrentando o sol e as ladeiras da cidade, levando nos ombros e no lombo do bicho o que mais valia por aquelas bandas — água.

                Sobre o jumento, equilibrava quatro ancorotas — cada uma com uns vinte litros da água cavada do fundo do rio. Ia de porta em porta, cumprimentando as famílias, enchendo potes e quartinhas, garantindo ao povo o conforto que só quem podia pagar tinha.

                — Água boa da cacimba, dona Mocinha! Fresquinha, tirada hoje cedo! — anunciava com a voz alegre, enquanto despejava o líquido no pote de barro.

                As mulheres sorriam, os meninos olhavam curiosos, e Candinho seguia viagem, subindo e descendo as ladeiras, o suor se misturando à poeira.

                Era desse ofício simples que tirava o sustento — da força dos braços e da esperteza de transformar o que a natureza dava em trabalho e dignidade. O Rio Ipanema podia secar, virar areia e pedra, mas Candinho sabia como fazer dele um amigo, um parceiro.

                E assim, enquanto o tempo passava e o sertão continuava seu ciclo de seca e esperança, o povo de Santana lembrava de Candinho — o rapaz pequeno e forte que fazia o rio correr de novo, um pote de cada vez.

 

Candinho e o Verão Sem Fim

 

                O verão daquele ano chegou mais cedo e prometia não ter fim. O sol de Santana do Ipanema parecia ter se zangado com o mundo. O chão rachava, o capim sumia, e até as pedras do rio pareciam arder. As cacimbas, antes cheias de promessa, começaram a minguar.

                Candinho, acostumado com a dureza do sertão, sentiu no peito o peso do tempo. Todo dia ele descia com o jumento até o leito seco do Ipanema, cavava a areia com as próprias mãos, esperando que a água brotasse como sempre. Mas agora, a água vinha fraca, teimosa, suja de barro.

                Mesmo assim, ele não desistia. — “Nem o sol manda mais do que a vontade do homem”, dizia pra si mesmo, enquanto o suor lhe corria pelo rosto.

                Numa dessas idas, encontrou Marta, moça nova que viera de Poço das Trincheiras com a família, fugindo da fome. Tinha os olhos fundos, o cabelo preso num lenço gasto e as mãos cheias de calo de tanto ralar mandioca. Ela também tirava água das cacimbas, mas não pra vender — era pra beber, pra cozinhar, pra manter vivos os irmãos pequenos.

                Candinho se aproximou e, vendo o balde dela vazio, ofereceu:

— Pode pegar um pouco da minha, moça. Ainda dá pra dois potes.

Ela o olhou com desconfiança, mas aceitou.

— Obrigada, moço. A seca tá ruim, né?

— Tá pior que cobra em estrada quente... Mas um dia chove. Sempre chove.

                Daquele dia em diante, Candinho passou a deixar um dos potes pra Marta.

                Os dois se viam quase toda manhã, quando o sol ainda não tinha acordado direito. Conversavam pouco, mas o silêncio entre eles era de quem se entendia sem precisar de palavra.

                Com o tempo, a seca piorou. O povo começou a ir embora pra cidades grandes — Maceió, Recife, até São Paulo. E Candinho, vendo o jumento emagrecer e as cacimbas virarem poeira, pensou que talvez fosse hora de seguir o mesmo caminho.

                Mas então, numa tarde abafada, enquanto se despedia do rio morto, sentiu o primeiro pingo cair. Um pingo só, quente como lágrima. Depois outro, e mais outro. E logo o céu inteiro se abriu num choro largo, como se o sertão todo desabasse em alegria.

                Candinho riu, ergueu os braços e gritou o nome de Marta. Ela veio correndo, os pés descalços atolando na lama nova. O rio voltava a ser rio. As cacimbas se enchiam. E ali, debaixo da chuva, os dois se abraçaram, cheirando a barro, suor e esperança.

                Daquele dia em diante, Candinho já não levava água sozinho.

                Marta ia com ele, montada no jumento, ajudando a encher as ancorotas. E assim, entre o sol e a chuva, o sertão e a vida, eles seguiram.

                Porque no sertão, o amor também é resistência — e até o rio de areia sabe voltar a correr quando o coração tem fé. 

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