Nos idos de 1940, em Santana do
Ipanema, o sertão alagoano fervia sob o sol que parecia nunca descansar. O Rio
Ipanema, que dava nome e vida à cidade, cortava o chão pedregoso como uma
cicatriz antiga — ora cheio e impetuoso nas raras chuvas, ora seco e manso a
maior parte do ano, transformado num rio de areia grossa.
Mas
mesmo quando o leito se esvaziava, o povo não perdia a esperança. Cavavam
cacimbas na areia, e delas brotava uma água salobra, meio doce, meio amarga,
que matava a sede dos homens, das cabras e do gado. Era dessa água que vivia
Cândido — ou Candinho, como todos o chamavam.
Candinho
era um jovem miúdo, de corpo enxuto e braços fortes, descendente de africanos,
mas já com o sangue misturado às muitas cores do Brasil. Tinha um olhar esperto
e um sorriso que aparecia fácil, mesmo quando o trabalho apertava.
Logo
ao nascer do dia, o povo de Santana já sabia o som que se aproximava: o bater
compassado das patas do jumento e o tinir das ancorotas balançando na cangalha.
Candinho vinha, firme, enfrentando o sol e as ladeiras da cidade, levando nos
ombros e no lombo do bicho o que mais valia por aquelas bandas — água.
Sobre
o jumento, equilibrava quatro ancorotas — cada uma com uns vinte litros da água
cavada do fundo do rio. Ia de porta em porta, cumprimentando as famílias,
enchendo potes e quartinhas, garantindo ao povo o conforto que só quem podia
pagar tinha.
—
Água boa da cacimba, dona Mocinha! Fresquinha, tirada hoje cedo! — anunciava
com a voz alegre, enquanto despejava o líquido no pote de barro.
As
mulheres sorriam, os meninos olhavam curiosos, e Candinho seguia viagem,
subindo e descendo as ladeiras, o suor se misturando à poeira.
Era
desse ofício simples que tirava o sustento — da força dos braços e da esperteza
de transformar o que a natureza dava em trabalho e dignidade. O Rio Ipanema
podia secar, virar areia e pedra, mas Candinho sabia como fazer dele um amigo,
um parceiro.
E
assim, enquanto o tempo passava e o sertão continuava seu ciclo de seca e
esperança, o povo de Santana lembrava de Candinho — o rapaz pequeno e forte que
fazia o rio correr de novo, um pote de cada vez.
Candinho e o Verão Sem Fim
O
verão daquele ano chegou mais cedo e prometia não ter fim. O sol de Santana do
Ipanema parecia ter se zangado com o mundo. O chão rachava, o capim sumia, e
até as pedras do rio pareciam arder. As cacimbas, antes cheias de promessa,
começaram a minguar.
Candinho,
acostumado com a dureza do sertão, sentiu no peito o peso do tempo. Todo dia
ele descia com o jumento até o leito seco do Ipanema, cavava a areia com as
próprias mãos, esperando que a água brotasse como sempre. Mas agora, a água
vinha fraca, teimosa, suja de barro.
Mesmo
assim, ele não desistia. — “Nem o sol manda mais do que a vontade do homem”,
dizia pra si mesmo, enquanto o suor lhe corria pelo rosto.
Numa
dessas idas, encontrou Marta, moça nova que viera de Poço das Trincheiras com a
família, fugindo da fome. Tinha os olhos fundos, o cabelo preso num lenço gasto
e as mãos cheias de calo de tanto ralar mandioca. Ela também tirava água das
cacimbas, mas não pra vender — era pra beber, pra cozinhar, pra manter vivos os
irmãos pequenos.
Candinho
se aproximou e, vendo o balde dela vazio, ofereceu:
— Pode pegar um pouco da minha,
moça. Ainda dá pra dois potes.
Ela o olhou com desconfiança, mas
aceitou.
— Obrigada, moço. A seca tá ruim,
né?
— Tá pior que cobra em estrada
quente... Mas um dia chove. Sempre chove.
Daquele
dia em diante, Candinho passou a deixar um dos potes pra Marta.
Os
dois se viam quase toda manhã, quando o sol ainda não tinha acordado direito.
Conversavam pouco, mas o silêncio entre eles era de quem se entendia sem
precisar de palavra.
Com
o tempo, a seca piorou. O povo começou a ir embora pra cidades grandes —
Maceió, Recife, até São Paulo. E Candinho, vendo o jumento emagrecer e as
cacimbas virarem poeira, pensou que talvez fosse hora de seguir o mesmo
caminho.
Mas
então, numa tarde abafada, enquanto se despedia do rio morto, sentiu o primeiro
pingo cair. Um pingo só, quente como lágrima. Depois outro, e mais outro. E
logo o céu inteiro se abriu num choro largo, como se o sertão todo desabasse em
alegria.
Candinho
riu, ergueu os braços e gritou o nome de Marta. Ela veio correndo, os pés descalços
atolando na lama nova. O rio voltava a ser rio. As cacimbas se enchiam. E ali,
debaixo da chuva, os dois se abraçaram, cheirando a barro, suor e esperança.
Daquele
dia em diante, Candinho já não levava água sozinho.
Marta
ia com ele, montada no jumento, ajudando a encher as ancorotas. E assim, entre
o sol e a chuva, o sertão e a vida, eles seguiram.
Porque no sertão, o amor também é resistência — e até o rio de areia sabe voltar a correr quando o coração tem fé.
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