quarta-feira, novembro 05, 2025

PÉROLA E O SILÊNCIO DAS TECLAS

               Santana do Ipanema, era um nome distante demais para a origem de Pérola, mas foi ali que o destino a pousou como folha levada pelo vento. Professora de datilografia, moça de idade avançada e de gestos medidos, Pérola era conhecida por sua voz calma e por seu olhar que parecia sempre mirar um tempo que não voltava mais. Solteira, diziam que nunca vira um homem em seu leito — expressão que o povo repetia mais por malícia que por verdade, pois dela só se sabia o que o silêncio permitia.

            A irmã, Joaquina, era de outro feitio. Risonha, costurava “para dentro e para fora”, como se dizia, para ajudar o marido Carlos, dono de um bar que vendia pinga de procedência duvidosa e doces para as crianças — pirulito e ximbra, que grudavam nos dedos e nos dentes. A casa deles cheirava a álcool, tecido e açúcar queimado. E, mesmo na pobreza, havia um movimento de vida que a casa de Pérola nunca teve.

            Pérola e Carlos vinham de longe. Quando ainda eram crianças, foram trazidos num balaio de couro, amarrado em caçoar sobre os lombos dos burros, junto de um grupo de retirantes que deixava a Bahia em busca de sustento no interior de Alagoas. Não sabiam o que era destino, apenas fome e poeira.

            Foi nessa travessia que conheceram Seu Marinarius, homem de posses e fala arrastada, dono da bodega mais movimentada do lugarejo. Ele comprou Carlos — não por maldade, mas por costume da época — para que ajudasse na arrumação dos sacos de farinha e na limpeza do armazém. Carlos cresceu forte e sagaz, aprendeu a lidar com gente, a medir a pinga e a pesar o feijão. Com o tempo, juntou uns trocados e abriu o próprio estabelecimento, herdando o nome e o jeito de falar do patrão.

            Pérola teve outro destino. Foi acolhida por um pastor da Assembleia de Deus, homem pequeno e adiposo, que viu nela um brilho manso e uma inteligência que pedia livro. Sob sua tutela, aprendeu a ler, a escrever e a datilografar — arte que, na época, parecia coisa de cidade grande. Tornou-se professora. Dizia o pastor que o Senhor a havia escolhido para ensinar “com os dedos o que o coração não sabia dizer”.

            Mas havia, em Pérola, um peso que as orações não tiravam. Nas tardes em que a luz atravessava as janelas da escola, ela se deixava embalar pelo som das teclas: tac-tac-tac, como se cada batida fosse uma lembrança de estrada, de chuva e de perda. Não havia ninguém que conhecesse suas cartas — as que nunca foram enviadas. Guardava-as em uma caixa de sapatos, com fitas amarelecidas e o cheiro de lavanda barata.

            De Joaquina, recebia visitas aos domingos. Joaquina falava muito, ria alto, contava as fofocas do bairro e reclamava do marido, mas sempre levava um pedaço de bolo ou um frasco de doce de leite. Pérola ouvia tudo, sorria pouco. Às vezes, deixava escapar uma lágrima breve, sem saber se era saudade ou solidão.

            Um dia, Carlos morreu — de uma cirrose que vinha se cozendo há anos, discreta como o hábito de beber escondido. O bar fechou, e Joaquina passou a costurar sozinha, sem canto nem conversa. Pérola foi quem lhe segurou a mão no velório, sem dizer palavra. Naquela noite, voltou para casa e ficou horas diante da máquina de datilografia. Escreveu uma carta longa, endereçada a ninguém, contando toda a história — o balaio, o pastor, as teclas, o silêncio.

No final, assinou:

“Pérola — professora de datilografia, filha do vento e da poeira.”

 Dobrou a carta, guardou-a na caixa de sapatos, e nunca mais escreveu outra.

 A Última Carta de Pérola

            Depois da morte de Carlos, o bar virou um lugar de sombra. As prateleiras vazias ainda guardavam o cheiro de aguardente e das risadas que um dia preencheram as noites do bairro. Joaquina tentava seguir, costurando mais do que nunca — roupa de defunto, de batizado, de noiva — e tudo com a mesma linha, que parecia amarrar a vida e a morte com o mesmo nó.

            Pérola passou a visitá-la com mais frequência. Levava pão de milho, cadernos velhos, palavras que pouco confortavam. Às vezes, apenas sentavam-se na varanda, uma costurando, a outra datilografando bilhetes que ninguém leria. As teclas da máquina misturavam-se ao som do pedal da máquina de costura — tac-tac-tac, tchic-tchic-tchic — como se a casa inteira pulsasse num compasso de lembrança.

            Com o tempo, Joaquina começou a adoecer. Um cansaço que não se via, mas que pesava nos ombros. Os olhos ficaram fundos, a respiração curta. Pérola, que conhecia o som do fim desde menina, percebeu antes dos médicos. Passou a dormir em sua casa, cuidando da amiga como quem borda o último ponto de uma colcha antiga.

            Numa noite de abril, quando o vento do rio vinha frio dos lados do Ipanema, Joaquina chamou Pérola com voz quase de menina:

— Péro… você ainda escreve suas cartas?

Pérola sorriu, triste:

— Escrevo, mas já não mando pra ninguém.

— Pois então escreve uma pra mim — disse Joaquina. — Uma carta que conte que eu fui feliz, mesmo costurando pra dentro e pra fora. Que Carlos me amou do jeito dele, e que eu nunca deixei de rir.

            Pérola prometeu. E naquela madrugada, enquanto Joaquina dormia o sono mais quieto de todos, a professora datilografou sua última carta. Não era para Deus, nem para o passado. Era para a amiga. Dizia assim:

“Minha amiga Joaquina partiu como se apagasse uma vela acesa em dia de vento.

Deixou o cheiro de tecido novo e de pão quente, o barulho do pedal e do riso.

Foi mulher inteira num tempo que pedia metades.

E eu, Pérola, que nunca soube amar senão pelas teclas, aprendi com ela que o amor também é remendo: discreto, mas forte.

Que a solidão pode ser uma prece, e que rir é uma forma de resistir.”

            Quando terminou, guardou a folha dobrada dentro do bolso do vestido de Joaquina. Depois, fechou a janela, apagou a luz e ficou escutando o vento.

            No dia seguinte, a notícia se espalhou devagar, como tudo naquela cidade.

            Disseram que Pérola se mudou para distante, que abriu uma pequena escola de datilografia para moças pobres, que ensinava mais sobre vida do que sobre letras. Outros diziam que morreu sozinha, cercada por máquinas antigas e cartas sem destino.

            Mas quem passava pela rua da escola à noite jurava ouvir, misturado ao vento, o som ritmado de duas máquinas — uma de costura, outra de escrever — conversando baixinho no escuro.

             E era assim que Joaquina e Pérola continuavam vivas: no som das teclas e dos pontos.

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