Santana do Ipanema, era um nome distante demais para a origem de Pérola, mas foi ali que o destino a pousou como folha levada pelo vento. Professora de datilografia, moça de idade avançada e de gestos medidos, Pérola era conhecida por sua voz calma e por seu olhar que parecia sempre mirar um tempo que não voltava mais. Solteira, diziam que nunca vira um homem em seu leito — expressão que o povo repetia mais por malícia que por verdade, pois dela só se sabia o que o silêncio permitia.
A irmã, Joaquina, era de outro feitio. Risonha, costurava
“para dentro e para fora”, como se dizia, para ajudar o marido Carlos, dono de
um bar que vendia pinga de procedência duvidosa e doces para as crianças —
pirulito e ximbra, que grudavam nos dedos e nos dentes. A casa deles cheirava a
álcool, tecido e açúcar queimado. E, mesmo na pobreza, havia um movimento de
vida que a casa de Pérola nunca teve.
Pérola e Carlos vinham de longe. Quando ainda eram
crianças, foram trazidos num balaio de couro, amarrado em caçoar sobre os
lombos dos burros, junto de um grupo de retirantes que deixava a Bahia em busca
de sustento no interior de Alagoas. Não sabiam o que era destino, apenas fome e
poeira.
Foi nessa travessia que conheceram Seu Marinarius, homem
de posses e fala arrastada, dono da bodega mais movimentada do lugarejo. Ele
comprou Carlos — não por maldade, mas por costume da época — para que ajudasse
na arrumação dos sacos de farinha e na limpeza do armazém. Carlos cresceu forte
e sagaz, aprendeu a lidar com gente, a medir a pinga e a pesar o feijão. Com o
tempo, juntou uns trocados e abriu o próprio estabelecimento, herdando o nome e
o jeito de falar do patrão.
Pérola teve outro destino. Foi acolhida por um pastor da
Assembleia de Deus, homem pequeno e adiposo, que viu nela um brilho manso e uma
inteligência que pedia livro. Sob sua tutela, aprendeu a ler, a escrever e a
datilografar — arte que, na época, parecia coisa de cidade grande. Tornou-se
professora. Dizia o pastor que o Senhor a havia escolhido para ensinar “com os
dedos o que o coração não sabia dizer”.
Mas havia, em Pérola, um peso que as orações não tiravam.
Nas tardes em que a luz atravessava as janelas da escola, ela se deixava
embalar pelo som das teclas: tac-tac-tac, como se cada batida fosse uma
lembrança de estrada, de chuva e de perda. Não havia ninguém que conhecesse
suas cartas — as que nunca foram enviadas. Guardava-as em uma caixa de sapatos,
com fitas amarelecidas e o cheiro de lavanda barata.
De Joaquina, recebia visitas aos domingos. Joaquina
falava muito, ria alto, contava as fofocas do bairro e reclamava do marido, mas
sempre levava um pedaço de bolo ou um frasco de doce de leite. Pérola ouvia
tudo, sorria pouco. Às vezes, deixava escapar uma lágrima breve, sem saber se
era saudade ou solidão.
Um dia, Carlos morreu — de uma cirrose que vinha se
cozendo há anos, discreta como o hábito de beber escondido. O bar fechou, e Joaquina
passou a costurar sozinha, sem canto nem conversa. Pérola foi quem lhe segurou
a mão no velório, sem dizer palavra. Naquela noite, voltou para casa e ficou
horas diante da máquina de datilografia. Escreveu uma carta longa, endereçada a
ninguém, contando toda a história — o balaio, o pastor, as teclas, o silêncio.
No final, assinou:
“Pérola — professora de
datilografia, filha do vento e da poeira.”
Depois da morte de Carlos, o bar virou um lugar de
sombra. As prateleiras vazias ainda guardavam o cheiro de aguardente e das
risadas que um dia preencheram as noites do bairro. Joaquina tentava seguir,
costurando mais do que nunca — roupa de defunto, de batizado, de noiva — e tudo
com a mesma linha, que parecia amarrar a vida e a morte com o mesmo nó.
Pérola passou a visitá-la com mais frequência. Levava pão
de milho, cadernos velhos, palavras que pouco confortavam. Às vezes, apenas
sentavam-se na varanda, uma costurando, a outra datilografando bilhetes que
ninguém leria. As teclas da máquina misturavam-se ao som do pedal da máquina de
costura — tac-tac-tac, tchic-tchic-tchic — como se a casa inteira pulsasse num
compasso de lembrança.
Com o tempo, Joaquina começou a adoecer. Um cansaço que
não se via, mas que pesava nos ombros. Os olhos ficaram fundos, a respiração
curta. Pérola, que conhecia o som do fim desde menina, percebeu antes dos
médicos. Passou a dormir em sua casa, cuidando da amiga como quem borda o último
ponto de uma colcha antiga.
Numa noite de abril, quando o vento do rio vinha frio dos
lados do Ipanema, Joaquina chamou Pérola com voz quase de menina:
— Péro… você ainda
escreve suas cartas?
Pérola sorriu, triste:
— Escrevo, mas já não
mando pra ninguém.
— Pois então escreve uma
pra mim — disse Joaquina. — Uma carta que conte que eu fui feliz, mesmo
costurando pra dentro e pra fora. Que Carlos me amou do jeito dele, e que eu
nunca deixei de rir.
Pérola prometeu. E naquela madrugada, enquanto Joaquina
dormia o sono mais quieto de todos, a professora datilografou sua última carta.
Não era para Deus, nem para o passado. Era para a amiga. Dizia assim:
“Minha amiga Joaquina partiu
como se apagasse uma vela acesa em dia de vento.
Deixou o cheiro de tecido
novo e de pão quente, o barulho do pedal e do riso.
Foi mulher inteira num
tempo que pedia metades.
E eu, Pérola, que nunca
soube amar senão pelas teclas, aprendi com ela que o amor também é remendo:
discreto, mas forte.
Que a solidão pode ser
uma prece, e que rir é uma forma de resistir.”
Quando terminou, guardou a folha dobrada dentro do bolso
do vestido de Joaquina. Depois, fechou a janela, apagou a luz e ficou escutando
o vento.
No dia seguinte, a notícia se espalhou devagar, como tudo
naquela cidade.
Disseram que Pérola se mudou para distante, que abriu uma
pequena escola de datilografia para moças pobres, que ensinava mais sobre vida
do que sobre letras. Outros diziam que morreu sozinha, cercada por máquinas
antigas e cartas sem destino.
Mas quem passava pela rua da escola à noite jurava ouvir,
misturado ao vento, o som ritmado de duas máquinas — uma de costura, outra de
escrever — conversando baixinho no escuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário