sábado, novembro 08, 2025

SÁBADO DE FEIRA EM SANTANA DO IPANEMA

 

            Era começo dos anos 1970 e Santana do Ipanema amanhecia com o cheiro da feira. O sol ainda nem tinha rompido a serra, e já se ouvia o burburinho das vozes, o som das carroças, o chiar das panelas de barro batendo umas nas outras.      

            Era sábado — o grande dia.

            Desde a quarta-feira já havia feira, mas a de sábado era diferente. Era a feira principal, o coração pulsando da cidade. Gente vinha de toda parte: das fazendas próximas, dos povoados distantes e até de outros municípios. Chegavam montados em burros, carro de boi, em caminhões, ou a pé, trazendo o que a terra e o trabalho lhes davam.

            A cidade parecia crescer para caber tanta vida.

            A feira se estendia por boa parte do centro, e havia uma ordem silenciosa que todos respeitavam. Lá no alto, quase na entrada norte, ficava a feira da farinha — o pó branco que sustentava famílias inteiras. Serras de sacos empilhados, medidos na cuia, vendidos no alvoroço das vozes misturadas. Descendo um pouco, o cenário mudava: era o espaço dos oleiros e artesãos da argila. Ali se via de tudo — potes, panelas, pratos, quartinhas, bois de barro, jarros com flores secas. Cada peça era feita à mão, moldada com a paciência de quem aprendeu observando o ritmo do rio e da terra. Mais abaixo vinha a feira das frutas e verduras, um mar de cores em meio ao barro. Havia banana, laranja, pitomba, mamão, melancia, tudo o que o sertão generoso ainda conseguia oferecer. O cheiro era doce, e os fregueses se acotovelavam escolhendo as melhores frutas da estação. Logo depois, o aroma mudava de novo. Era o trecho das barracas de comidas e quitandas — queijo fresco, bolo de mandioca, tapioca quente, quebra-queixo, morosilha, doce de leite, de caju, de mamão.

            Ali, ninguém passava com fome.

            As mulheres que vendiam eram conhecidas pelos fregueses, e bastava um sorriso para garantir um pedaço a mais, “de cortesia”.

            Seguindo pela rua, o barulho dos martelos anunciava o espaço das ferramentas rurais. Enxadas, foices, facões e alicates eram expostos em bancas improvisadas, reluzindo ao sol. Mais adiante, num espaço coberto, o açougue. As carnes penduradas nos ganchos balançavam com o vento; o chão, de pedra, era frio e úmido. Os açougueiros pesavam a carne nas balanças de ferro, com mãos firmes e olhos atentos. Saindo dali, voltava-se ao tumulto das barracas. Vendia-se de tudo: tecidos, utensílios, miudezas e até promessas.

            Os ourives chamavam os matutos, exibindo anéis e cordões reluzentes:

— É ouro bom, meu amigo! Ouro de Arapiraca!

            E muitos acreditavam, encantados com o brilho das pedras falsas e o carisma do vendedor.

            Em frente à Igreja Matriz, o corredor se alargava. Era o espaço das roupas e calçados, um desfile de cores e tecidos vindos de longe. As moças experimentavam vestidos, os rapazes olhavam de soslaio, e o sino da igreja lembrava, de tempos em tempos, que era sábado — dia de feira e de fé.

            Entre as barracas, circulavam as carroças de madeira — pequenas, com duas alças e uma roda à frente. Os meninos e adolescentes que as empurravam eram figuras conhecidas da feira. As donas de casa os contratavam logo cedo, e eles seguiam o dia todo empurrando as carroças pelas ruas poeirentas, recolhendo as compras, rindo, suando, crescendo entre pregões e cheiros de feira. Ao final, levavam as mercadorias até as casas das famílias, muitas vezes ganhando, além do trocado, um pedaço de bolo e um copo de café.

            Quando o sol começava a baixar e o sino das cinco tocava na Matriz, a feira se desfazia lentamente. Restava o chão sujo de cascas e farelos, o cheiro forte da carne, o eco das vozes. Mas o coração da cidade continuava quente, satisfeito — como quem cumpriu um ritual antigo e sagrado.

            Era assim, todo sábado, em Santana do Ipanema.

            Um dia comum que se tornava memória. Um retrato do sertão que vivia, vendia e sonhava entre bancas, carroças e o rumor eterno da vida simples.

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