Nas manhãs quentes do
início dos anos 70, as crianças de Santana do Ipanema que moravam na rua
Antônio Tavares começaram a descobrir que o mundo não cabia mais apenas na
sombra das casas nem no alcance do chamado das mães. Cresciam em silêncio, como
cresce o rio depois da chuva: primeiro alargando as margens, depois ganhando
correnteza. A infância, que antes se resumia à esquina e ao quintal, passava a
pedir distância, risco e horizonte.
A escola já não era a de dona Penina, nem o antigo Grupo
Escolar Padre Francisco Correia. Agora era o Ginásio Cenecista Santana, nome
grande para meninos e meninas que também se sentiam maiores. Os mais velhos
diziam, meio rindo, meio alertando, que aquelas crianças estavam “buscando
outros pastos”. E estavam mesmo. Antes, quando pequenos, o Rio Ipanema era o
limite do mundo — e já era imenso. Foi nele que aprenderam a nadar sem boia, a
disputar partidas de futebol improvisadas na areia, a brincar de esconde-esconde
entre as pedras, de mocinho e bandido nas margens secas. Construíram malocas de
folhas de pé de mamona, boiaram em câmaras de ar de automóveis, em troncos de
bananeira e de mulungu. Correram descalços sobre a areia quente, cavaram
cacimbas, pescaram piabas e cascudos com as mãos escondidas sob as pedras.
Alguns, mais ousados, se gabavam de pegar traíra.
Havia também a engenhosidade da infância livre:
armadilhas feitas com garrafas de champanhe, quebradas no fundo para enganar o
peixe; copos fechados com bolacha de cabaça, deixando só um pequeno buraco de
entrada; redes improvisadas de estopa, seguradas por duas crianças que cercavam
a água com paciência. Brincavam com girinos, quebravam as ovas de sapos presas
às pedras, sem saber que também ali aprendiam, sem aula nem livro, os mistérios
da vida.
Mas crescer é desejar ir mais longe. E, quando o Rio
Ipanema já parecia conhecido demais, surgiu o chamado do Riacho do Bode. A
expedição não era brincadeira: começava dias antes, em reuniões sérias, feitas
à sombra de muros e calçadas. Planejava-se tudo sem adulto algum. Separavam
anzóis, varas, chumbadas; compravam nylon; escolhiam tamanhos diferentes de
anzol, como se fossem grandes pescadores. As iscas vinham do quintal, cavadas
na terra úmida à procura de minhocas. Passavam na venda de seu Carrito para
comprar cajuína, pão, mortadela ou salame, e algum confeito para adoçar a
caminhada. Tudo era dividido, conferido, guardado com cuidado.
No dia marcado, mochilas nas costas, boné ou chapéu na
cabeça, seguiam em algazarra pela estrada, rindo alto, sentindo-se donos do
tempo. Ao chegar, cada um ocupava seu lugar à beira da água. Começava o
campeonato silencioso e competitivo: quem pegaria mais peixe, quem teria a
melhor história para contar. Depois vinha o mergulho coletivo, o corpo jogado
na água escura e funda, mais lago do que riacho, respeitada com certo temor. A
fome chegava, e o piquenique improvisado virava festa. Comiam juntos, sentados
na terra, partilhando pão, risos e segredos.
No fim da tarde, o sol já baixo, juntavam tudo e
iniciavam o caminho de volta. No peito, a sensação de vitória; na cabeça, o
ensaio das desculpas que dariam às mães, pois quase nunca elas sabiam por onde
andavam aqueles jovens aventureiros. E talvez nem precisassem saber. Aquelas
crianças aprendiam sozinhas a se organizar, a confiar umas nas outras, a medir
riscos, a cuidar do grupo. Aprendiam, sobretudo, que a liberdade tem o tamanho
da coragem e da amizade.
Hoje, quando a memória volta a essas águas, não é só o
rio que corre: corre também a saudade de um tempo em que crescer era isso —
caminhar para longe de casa sem adulto algum, mas carregando no coração a
certeza de que o mundo podia ser explorado, desde que fosse feito em bando, com
riso, invenção e sonho.

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