quarta-feira, dezembro 24, 2025

QUANDO O RIO JÁ NÃO BASTAVA


Nas manhãs quentes do início dos anos 70, as crianças de Santana do Ipanema que moravam na rua Antônio Tavares começaram a descobrir que o mundo não cabia mais apenas na sombra das casas nem no alcance do chamado das mães. Cresciam em silêncio, como cresce o rio depois da chuva: primeiro alargando as margens, depois ganhando correnteza. A infância, que antes se resumia à esquina e ao quintal, passava a pedir distância, risco e horizonte.

            A escola já não era a de dona Penina, nem o antigo Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Agora era o Ginásio Cenecista Santana, nome grande para meninos e meninas que também se sentiam maiores. Os mais velhos diziam, meio rindo, meio alertando, que aquelas crianças estavam “buscando outros pastos”. E estavam mesmo. Antes, quando pequenos, o Rio Ipanema era o limite do mundo — e já era imenso. Foi nele que aprenderam a nadar sem boia, a disputar partidas de futebol improvisadas na areia, a brincar de esconde-esconde entre as pedras, de mocinho e bandido nas margens secas. Construíram malocas de folhas de pé de mamona, boiaram em câmaras de ar de automóveis, em troncos de bananeira e de mulungu. Correram descalços sobre a areia quente, cavaram cacimbas, pescaram piabas e cascudos com as mãos escondidas sob as pedras. Alguns, mais ousados, se gabavam de pegar traíra.

            Havia também a engenhosidade da infância livre: armadilhas feitas com garrafas de champanhe, quebradas no fundo para enganar o peixe; copos fechados com bolacha de cabaça, deixando só um pequeno buraco de entrada; redes improvisadas de estopa, seguradas por duas crianças que cercavam a água com paciência. Brincavam com girinos, quebravam as ovas de sapos presas às pedras, sem saber que também ali aprendiam, sem aula nem livro, os mistérios da vida.

            Mas crescer é desejar ir mais longe. E, quando o Rio Ipanema já parecia conhecido demais, surgiu o chamado do Riacho do Bode. A expedição não era brincadeira: começava dias antes, em reuniões sérias, feitas à sombra de muros e calçadas. Planejava-se tudo sem adulto algum. Separavam anzóis, varas, chumbadas; compravam nylon; escolhiam tamanhos diferentes de anzol, como se fossem grandes pescadores. As iscas vinham do quintal, cavadas na terra úmida à procura de minhocas. Passavam na venda de seu Carrito para comprar cajuína, pão, mortadela ou salame, e algum confeito para adoçar a caminhada. Tudo era dividido, conferido, guardado com cuidado.

            No dia marcado, mochilas nas costas, boné ou chapéu na cabeça, seguiam em algazarra pela estrada, rindo alto, sentindo-se donos do tempo. Ao chegar, cada um ocupava seu lugar à beira da água. Começava o campeonato silencioso e competitivo: quem pegaria mais peixe, quem teria a melhor história para contar. Depois vinha o mergulho coletivo, o corpo jogado na água escura e funda, mais lago do que riacho, respeitada com certo temor. A fome chegava, e o piquenique improvisado virava festa. Comiam juntos, sentados na terra, partilhando pão, risos e segredos.

            No fim da tarde, o sol já baixo, juntavam tudo e iniciavam o caminho de volta. No peito, a sensação de vitória; na cabeça, o ensaio das desculpas que dariam às mães, pois quase nunca elas sabiam por onde andavam aqueles jovens aventureiros. E talvez nem precisassem saber. Aquelas crianças aprendiam sozinhas a se organizar, a confiar umas nas outras, a medir riscos, a cuidar do grupo. Aprendiam, sobretudo, que a liberdade tem o tamanho da coragem e da amizade.

            Hoje, quando a memória volta a essas águas, não é só o rio que corre: corre também a saudade de um tempo em que crescer era isso — caminhar para longe de casa sem adulto algum, mas carregando no coração a certeza de que o mundo podia ser explorado, desde que fosse feito em bando, com riso, invenção e sonho.


 

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