terça-feira, dezembro 16, 2025

OS CAMINHOS DA FÉ NA INFÂNCIA SERTANEJA


             A quarta-feira chegava como um suspiro pesado, vestida de roxo e silêncio. “Oh, quarta-feira ingrata, chegou tão depressa só para contrariar”, diziam os mais velhos, e a frase ecoava pelas ruas de Santana do Ipanema como um sino invisível anunciando o fim da alegria solta do carnaval e o começo de um tempo outro: a Quaresma. Um tempo de dentro, de freio no corpo e escuta da alma.

            Nas casas, os quadros de santos, os crucifixos e as imagens que sempre vigiaram a vida cotidiana eram cobertos com tecidos roxos. As paredes ficavam estranhas, como se os santos também estivessem em recolhimento. As crianças aprendiam cedo que aquele gesto simples não era castigo, mas respeito. Aprendiam que nem tudo precisa estar à mostra, que há momentos de esconder para compreender melhor.

            Na igreja matriz de Senhora Santana, os bancos se dividiam em duas carreiras: de um lado os homens, do outro as mulheres. Elas chegavam de véu na cabeça, sinal de humildade e tradição. Para as crianças, aquilo tudo parecia uma grande coreografia sagrada. Cada gesto tinha um sentido, cada silêncio ensinava mais do que muitas palavras. Ali se aprendia a esperar, a ouvir, a permanecer quieto — virtudes raras, mas fundamentais para a vida.

            A Semana Santa era o coração desse aprendizado. Domingo de Ramos, com os galhos levantados como esperança verde. A Procissão do Encontro, carregada de emoção. O Lava-pés, que ensinava que até o maior deve saber se abaixar. O Senhor Morto, quando o mundo parecia parar e o choro contido ensinava sobre a dor. O Sábado de Aleluia, misto de medo e expectativa. E, por fim, a Ressurreição, quando a alegria voltava como quem retorna para casa.

            As crianças participavam de tudo. Faziam jejum do jeito que podiam, respeitavam o dia de não comer carne, iam à igreja ajoelhar — mesmo que o tempo parecesse eterno para pernas tão pequenas. Confessavam, comungavam, aprendiam a pedir perdão e a recomeçar. Aprendiam que errar faz parte, mas reconhecer o erro é o que forma o caráter.

            Na sexta-feira, a fé virava gesto concreto. As famílias separavam arroz, feijão, farinha, pedaços de bacalhau. Era para repartir com quem tinha menos. As crianças observavam, ajudavam, perguntavam. E assim aprendiam, sem lição escrita, que fé sem partilha é vazia, e que dividir é uma forma silenciosa de rezar. Havia ainda a subida à Serra da Micro-ondas, o ponto mais alto da cidade. A procissão seguia pelos becos, descia ao rio, cruzava a velha ponte de pedra, passava pelas terras de seu Ronasso e subia o morro. Descalços, com velas acesas, relíquias nas mãos e promessas no coração, homens, mulheres e crianças caminhavam juntos. Lá em cima, diante do cruzeiro e da pequena igrejinha, Santana do Ipanema se abria inteira aos olhos. E as crianças aprendiam que a fé também é esforço, é caminho íngreme, é persistência.

            O sábado tinha outro tom. As ruas se enchiam de risos nervosos e barulho com a malhação. A história de que o padre Cirilo estava trancado na igreja procurando a aleluia — e que, se não encontrasse, o mundo acabaria — misturava medo e fantasia. Mas até isso ensinava: que o fim só existe para dar lugar a um recomeço.

            No domingo da Ressurreição, tudo mudava. O roxo cedia lugar à luz, os santos eram descobertos, os sinos tocavam diferente. A cidade respirava alegria. As crianças sentiam, mesmo sem saber explicar, que algo importante havia sido aprendido. Que depois da dor vem a esperança. Que depois do silêncio, a palavra. Que depois da morte, a vida.

            Assim, entre véus, jejuns, procissões e partilhas, as crianças de Santana do Ipanema foram sendo moldadas. A fé não era apenas rezada — era vivida. E desses ritos simples nasceu uma formação moral profunda: respeito, solidariedade, humildade e esperança. Valores que, como a cidade vista do alto da serra, permanecem gravados na memória para sempre.

 

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