quarta-feira, dezembro 17, 2025

QUANDO O MUNDO CABE NA SALA DE CASA


 

            Em Santana do Ipanema, o aprendizado não cabia apenas dentro das paredes da escola. Ele escorria pelas ruas quentes, atravessava as calçadas de barro batido e entrava nas casas pela porta da frente, sempre aberto, sempre vivo. As crianças aprendiam ouvindo. O rádio, pousado num canto da sala, falava grosso, chiava, cantava e ensinava. Era por ele que o mundo chegava primeiro: notícias distantes, músicas que vinham de longe, vozes que pareciam morar em outras cidades e outros tempos. Entre uma canção e outra, a imaginação se alargava sem pedir licença.

            A escola ensinava as letras, os números e os mapas, mas era preciso mais. A igreja ajudava a organizar os sentimentos, dava nome ao silêncio e às perguntas profundas. Já a família fazia sua parte com zelo quase invisível: apresentava o mundo aos poucos, como quem abre janelas para o vento entrar sem derrubar a casa.

            Nem todas as famílias faziam assim, é verdade. Mas algumas tinham esse compromisso silencioso de ampliar horizontes. Levavam os filhos ao cinema. Mesmo que fosse só na cidade vizinha, planejavam viagens curtas, que pareciam longas aventuras. E quando não dava para ir longe, traziam o mundo para dentro de casa. Na sala, a vitrola girava como um coração mecânico. O ritual de comprar discos novos era levado a sério. Roberto Carlos embalava os domingos, Agnaldo Timóteo fazia a casa silenciar, Rita Lee sacudia os pensamentos, Elvis Presley atravessava oceanos e pousava ali, entre o sofá e a mesa de centro. A música era partilhada como pão: todos ouviam, todos sentiam.

            Na banca de revistas, a semana tinha cheiro de papel novo. A mãe escolhia Capricho, Sétimo Céu ou Manequim. O pai folheava a Isto É, Manchete, os jornais grandes que falavam do Brasil e do mundo. As crianças saíam carregadas de sonhos coloridos: Tio Patinhas, Turma da Mônica, Tex, Tarzan, Super-Homem, Batman. Cada revista era uma porta secreta. Os álbuns de figurinhas espalhavam-se pelo chão. Copa do Mundo, heróis, artistas. As figurinhas eram tesouros negociados com seriedade: trocas, promessas, apostas no bafo. Colecionavam-se imagens, palavras, chaveiros, pequenas coisas que davam a sensação de pertencer a algo maior.

            Lia-se muito, mesmo sem perceber que era leitura. Caça-palavras, quadrinhos, manchetes de jornal. Gazeta de Alagoas, Jornal de Alagoas, Diário de Pernambuco, Folha de São Paulo. Os nomes dos jornais soavam grandes demais para uma cidade pequena, mas cabiam perfeitamente nas mãos curiosas das crianças. Assim, o conhecimento crescia num movimento de troca. Os adultos ensinavam sem discursos longos, as crianças aprendiam brincando. Em Santana do Ipanema, aprender era viver. E viver, naquele tempo, era um exercício diário de escuta, partilha e imaginação — um mundo inteiro cabendo dentro de uma casa, de um disco girando, de uma revista recém-aberta.


 

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