sexta-feira, dezembro 12, 2025

O CALEIDOSCÓPIO DE MISAEL


            O mundo infantil no início da segunda metade do século XX, em Santana do Ipanema, era um universo de invenções, de risos soltos e de descobertas que nasciam das mãos simples e do olhar atento dos mais velhos. As crianças aprendiam muito antes de saber ler, guiadas por tios, avós e bisavôs que carregavam no peito histórias vividas e sabedoria acumulada.

            Foi nesse tempo que Misael, o bisavô, entrou para a nossa memória como um guardião de encantos. Já era idoso, os cabelos ralos e brancos, mas o brilho nos olhos lembrava um menino que tinha atravessado dois séculos. Misael nascera ainda no finalzinho do Império, quando o Brasil dava seus últimos passos antes de se tornar república. Cresceu vendo o país mudar, tornou-se adolescente já republicano, e adulto quando o novo século nascia cheio de promessas. Casou com Júlia e construiu com ela uma família de quatro filhas, das quais três se criaram — entre elas, Iluminata, a caçula, que mais tarde seria mãe de Maria, minha mãe.

            O sangue de Misael carregava também a força dos comerciantes sertanejos. Ele era de uma família envolvida no comércio e na distribuição do sal que chegava de Mossoró. O sal fazia um longo caminho: partia das salinas, descia para o porto de Areia Branca e, de lá, seguia pelos vapores até Penedo. Subia o Rio São Francisco até Pão de Açúcar, onde tropas de burros marcavam o passo firme rumo ao sertão. Era assim que o sal chegava a Santana do Ipanema, espalhando-se depois por todas as feiras e povoados da região.

            Talvez fosse essa vivência — a de ver o mundo em movimento, passando de um lugar a outro, mudando de forma como as águas do rio — que fazia de Misael um homem tão sensível às pequenas maravilhas. Foi ele quem, certo Natal, colocou nas mãos de cada bisneto um presente que parecia nascido da própria magia: um caleidoscópio feito por ele, com tubos simples, pedacinhos de vidro colorido, fragmentos brilhantes e uma engenhoca de espelhos cuidadosamente montada. Não era comprado. Era construído. Era pensado para nós.

            Quando aproximávamos o olho do pequeno furo e girávamos o tubo, o mundo mudava. As cores se juntavam e se separavam como se dançassem. Estrelas apareciam do nada, flores se formavam e se desfaziam, desenhos que não existiam em lugar nenhum se revelavam só para nós. Cada giro era uma surpresa, cada volta um universo inteiro. E era impossível não pensar que aquele presente dizia mais sobre Misael do que qualquer palavra: ele queria que víssemos além, que enxergássemos beleza onde o cotidiano escondia, que descobríssemos que o mundo — mesmo o mundo simples de Santana do Ipanema — podia ser encantado se tivéssemos o olhar certo.

            O caleidoscópio não era apenas um brinquedo. Era um convite. Um convite para olhar a vida com cores, com movimento, com surpresa. Um convite para ver o mundo como Misael sempre viu: grande, transformável e cheio de possibilidades.

            Até hoje, quando lembro daquele pequeno tubo nas mãos de criança, sinto que vejo de novo o brilho no olhar do bisavô — o mesmo brilho que ele colocou dentro de cada caleidoscópio. Um brilho que continua vivo, girando dentro da nossa memória, como as formas coloridas que nunca se repetiam. 

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