O mundo infantil no início da segunda metade do século XX, em Santana do Ipanema, era um universo de invenções, de risos soltos e de descobertas que nasciam das mãos simples e do olhar atento dos mais velhos. As crianças aprendiam muito antes de saber ler, guiadas por tios, avós e bisavôs que carregavam no peito histórias vividas e sabedoria acumulada.
Foi nesse tempo que Misael, o bisavô, entrou para a nossa
memória como um guardião de encantos. Já era idoso, os cabelos ralos e brancos,
mas o brilho nos olhos lembrava um menino que tinha atravessado dois séculos.
Misael nascera ainda no finalzinho do Império, quando o Brasil dava seus
últimos passos antes de se tornar república. Cresceu vendo o país mudar, tornou-se
adolescente já republicano, e adulto quando o novo século nascia cheio de
promessas. Casou com Júlia e construiu com ela uma família de quatro filhas,
das quais três se criaram — entre elas, Iluminata, a caçula, que mais tarde
seria mãe de Maria, minha mãe.
O sangue de Misael carregava também a força dos
comerciantes sertanejos. Ele era de uma família envolvida no comércio e na
distribuição do sal que chegava de Mossoró. O sal fazia um longo caminho:
partia das salinas, descia para o porto de Areia Branca e, de lá, seguia pelos
vapores até Penedo. Subia o Rio São Francisco até Pão de Açúcar, onde tropas de
burros marcavam o passo firme rumo ao sertão. Era assim que o sal chegava a
Santana do Ipanema, espalhando-se depois por todas as feiras e povoados da
região.
Talvez fosse essa vivência — a de ver o mundo em
movimento, passando de um lugar a outro, mudando de forma como as águas do rio
— que fazia de Misael um homem tão sensível às pequenas maravilhas. Foi ele
quem, certo Natal, colocou nas mãos de cada bisneto um presente que parecia
nascido da própria magia: um caleidoscópio feito por ele, com tubos simples,
pedacinhos de vidro colorido, fragmentos brilhantes e uma engenhoca de espelhos
cuidadosamente montada. Não era comprado. Era construído. Era pensado para nós.
Quando aproximávamos o olho do pequeno furo e girávamos o
tubo, o mundo mudava. As cores se juntavam e se separavam como se dançassem.
Estrelas apareciam do nada, flores se formavam e se desfaziam, desenhos que não
existiam em lugar nenhum se revelavam só para nós. Cada giro era uma surpresa,
cada volta um universo inteiro. E era impossível não pensar que aquele presente
dizia mais sobre Misael do que qualquer palavra: ele queria que víssemos além,
que enxergássemos beleza onde o cotidiano escondia, que descobríssemos que o
mundo — mesmo o mundo simples de Santana do Ipanema — podia ser encantado se
tivéssemos o olhar certo.
O caleidoscópio não era apenas um brinquedo. Era um
convite. Um convite para olhar a vida com cores, com movimento, com surpresa. Um
convite para ver o mundo como Misael sempre viu: grande, transformável e cheio
de possibilidades.
Até hoje, quando lembro daquele pequeno tubo nas mãos de criança, sinto que vejo de novo o brilho no olhar do bisavô — o mesmo brilho que ele colocou dentro de cada caleidoscópio. Um brilho que continua vivo, girando dentro da nossa memória, como as formas coloridas que nunca se repetiam.

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