quinta-feira, dezembro 25, 2025

QUANDO A LUA ERA A ESCOLA



 

            Nas noites quentes do sertão alagoano, o tempo parecia andar descalço. A lua subia devagar, como quem pede licença, e as estrelas acendiam uma a uma para assistir ao que viria: gente sentada nas portas, bancos de madeira rangendo manso, o cheiro da terra ainda quente do sol do dia. Um ou dois adultos se acomodavam para descansar da lida, olhos erguidos para o céu, e logo as crianças iam chegando, vindas de todos os cantos, trazendo no corpo o cansaço bom da brincadeira e no rosto a curiosidade acesa.

            Algumas vinham esbaforidas de tanto correr; outras ainda pulavam o avião riscado no chão, ocupando casas imaginárias com saltos precisos; havia as que giravam a corda num ritmo antigo e, mais adiante, dois times disputavam a queimada, a bola cruzando o escuro como um cometa breve. E, no meio de tudo, surgia o passar do anel, com suas palavras quase sagradas — “boca de forno” — e o riso contido de quem aguardava o castigo, que nunca era pesado, mas sempre ensinava.

            Quando a roda se fechava, a voz do adulto ganhava a noite. Era ali que o mundo se explicava sem pressa. Falava-se do dinheiro que mudava de nome e de valor sem avisar a quem morava longe, do papel guardado em potes, colchões e latas que, de repente, já não valia nada. Não era só um causo: era alerta. Aprendia-se que o tempo corre, que a informação é caminho, que o cuidado também é sabedoria. As crianças ouviam com olhos atentos, aprendendo a ler o mundo antes mesmo de saber ler letras.

            Depois vinham as botijas. Tesouros enterrados por mãos temerosas, guardados pela avareza ou pelo excesso de zelo. Dizia-se que a alma do guardador não descansava enquanto o ouro não encontrasse destino justo. E assim, em sonho, escolhia alguém para revelar o segredo, impondo regras antigas — gente de fé, número certo de pessoas, pureza de intenção — porque o tesouro, mais do que riqueza, exigia retidão. Se faltasse respeito ao combinado, a botija se escondia de novo, como lição repetida.

            Essas histórias desciam sobre as crianças como um manto leve. Não eram apenas fantasias: eram mapas. Ensinavam prudência, partilha, responsabilidade; mostravam que toda escolha tem consequência e que o saber passa de boca em boca como pão repartido. Os adultos, cercados de meninos e meninas, eram pontes entre tempos — como os griôs africanos, os anciãos indígenas, os trovadores da Europa feudal — fiadores de uma memória que não cabia em livro.

            Quando a noite se aprofundava e a hora do recolher chegava, cada criança levava consigo um pedaço do que ouvira. Um medo bom, uma coragem nascente, uma pergunta guardada. Dormiam sabendo que o dia seguinte seria continuação daquilo que se vive bem junto: brincar, ouvir, aprender.

            E assim cresciam. Com o corpo forte das brincadeiras e a mente acesa pelas histórias. Porque no sertão, sob a lua quente, aprender sempre foi um ato coletivo — e ensinar, um gesto de cuidado que molda o futuro sem fazer barulho.


 

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