quarta-feira, novembro 26, 2025

MEMÓRIAS GUARDADAS EM LUZ - COM RETOQUE OU SEM RETOQUE?

 

            Memórias são passagens. São pedaços de vida que colhemos ao longo do caminho — encontros com outros, encontros conosco, pequenos instantes que insistem em permanecer. E cada pessoa encontra um modo próprio de guardá-las: num diário amarelado, num bibelô esquecido na cristaleira, numa carta dobrada dentro de uma caixa de sapatos. Em Santana do Ipanema, nas décadas de 1960 e 1970, as lembranças se multiplicavam como sementes lançadas ao vento, e cada morador encontrava o seu jeito de guardar o que o coração não queria perder.

            Entre todas as formas de preservar o tempo, havia uma que carregava um encanto especial: a fotografia. Naquele tempo, ter uma máquina fotográfica era privilégio de poucos. Por isso, os lambe-lambe da feira de sábado eram tão importantes. Ali, com suas engenhocas cobertas por panos escuros, faziam nascer retratos instantâneos. As famosas fotos três por quatro, sempre com uma tabuleta no peito marcando a data, eram documentos para a vida adulta. Mas havia mais: famílias de sítio, num misto de orgulho e timidez, posavam para fotos de corpo inteiro. Enamorados registravam seu amor em papel, escrevendo atrás da foto uma dedicatória que valia mais que qualquer aliança. Filhos e pais fotografavam-se para enviar a parentes distantes — e assim as memórias viajavam até São Paulo e tantos outros cantos do país.

            E havia o fotógrafo das crianças, aquele que encantava os pequenos. Carregava um cavalinho de madeira às costas, selado como se viesse de um filme. Trazia também armas de brinquedo, pois as crianças gostavam de se imaginar heróis do faroeste. Eram cenas inventadas, fantasias puras, mas que ganhavam eternidade no visor da sua máquina. A fotografia, naquele tempo, era quase mágica.

            Mas nenhum nome se destacava tanto quanto o do fotógrafo Zezinho. Em Santana, bastava dizer seu nome — todos sabiam quem era. Um profissional de mão cheia, diziam com orgulho. Seu estúdio ficava na rua Benedito Melo, a conhecida rua Nova. E era de lá que Zezinho saía, ainda cedo, carregando sua câmera e a responsabilidade de transformar vidas comuns em imagens eternas.

            Nas casas das famílias que o contratavam, tudo já estava preparado: crianças de banho tomado, cabelos penteados com vaselina, roupas de alfaiataria cuidadosamente passadas. Zezinho organizava o cenário, pedia para virar um pouco o rosto, ajeitava a luz, arrumava as mãos. Fazia fotos individuais, em pares, em grupos. E quando terminava, com a calma de quem respeita o tempo da arte, perguntava: “Com retoque ou sem retoque?”. Porque antes do digital, retoque era ofício, paciência e talento.

            Nas escolas, o dia da foto era um acontecimento. Zezinho montava seu cenário tradicional: mesa forrada, enciclopédias empilhadas, globo terrestre, porta-canetas... e a criança segurando a caneta, como se estivesse escrevendo o próprio futuro. Atrás, a bandeira do Brasil. Depois, era esperar ansiosamente pelo envelope com as fotos, para guardá-las em álbuns que seriam, mais tarde, mostrados com orgulho às visitas.

             Ser fotógrafo naquele tempo era mais que um trabalho: era missão. Era o ofício de capturar o instante para que ele não se perdesse. Era transformar o cotidiano em lembrança, o simples em eterno. Zezinho e tantos outros fotógrafos foram guardiões da memória de uma cidade inteira, preservando os sorrisos, as roupas de domingo, as primeiras poses, as travessuras disfarçadas, os olhares que já não estão mais entre nós.

            Hoje, ao folhear um álbum antigo ou encontrar uma fotografia dentro de um livro esquecido, sentimos o cheiro do passado. E entendemos que, graças aos fotógrafos, o tempo não levou tudo. A luz ficou. A memória ficou.

            E Santana do Ipanema, com seus encantos, continua vivendo em cada imagem que resistiu ao passar dos anos.

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