sexta-feira, dezembro 26, 2025

QUANDO O CÉU VIRAVA FESTA E A TERRA PEDIA CUIDADO




           

            As noites de festa em Santana do Ipanema tinham cheiro de pólvora e promessa. Antes mesmo do primeiro foguete riscar o céu, já havia um silêncio diferente no ar, como se a cidade inteira prendesse a respiração. As famílias saíam de casa devagar, crianças de mãos dadas com os pais, olhos arregalados de expectativa. Era assim no Natal, na virada do ano, em São João — quando os fogos pareciam mais ousados —, em São Pedro, São Cristóvão e, sobretudo, nas festas de Senhora Santana, quando o céu se tornava altar.

            Para as crianças, o encanto começava no assobio. Aquele som fino, subindo rápido, puxando o olhar para cima, anunciava o instante mágico da explosão. O foguete, engenhoca simples de bambu e fogo, parecia vivo: nascia na mão do fogueteiro, ganhava impulso, sumia na altura e, depois de um breve suspense, se abria em luz. Quando demorava um pouco mais, vinha o grito coletivo: “Falhou!”. E logo o riso, porque quase sempre não falhava — apenas nos ensinava a esperar.

            Havia os que estouravam como trovão seco, fazendo o peito vibrar, e os que preferiam a delicadeza: estrelas coloridas, pétalas de luz caindo devagar sobre a cidade. Mas nada se comparava às noites de novena de Senhora Santana. Zuza, o fogueteiro famoso, preparava sua arte com solenidade. Da porta da matriz até o meio da rua, um fio de pólvora estendido como caminho de fogo. No centro, um grande caibro guardava o segredo. Ao final da missa, quando o estopim era aceso, o fogo corria como reza apressada, e então o espetáculo se revelava: luzes giravam em mandala, cores dançavam no escuro, e, por fim, surgia a imagem da santa. Quando parecia acabar, a surpresa: a imagem girava e subia, cercada de estrelas, e todas as cabeças se voltavam para o céu, como quem espera uma bênção descendo em claridade.

            Mas a mesma pólvora que escreve beleza no céu pode, descuidada, rasgar a terra. Santana também aprendeu isso no susto. Na rua de São Pedro, outra família moldava fogos dentro de casa, como tantos faziam, sem imaginar o perigo silencioso. Numa manhã comum, de café servido e conversas baixas, um estrondo quebrou o cotidiano. A mesa tremeu, os pires dançaram, e o coração disparou. A notícia correu mais rápido que a fumaça: a casa havia explodido. O que antes era ofício virou luto. A sobrevivente, poupada por um acaso, carregou para sempre o peso de ter ficado.

            Desde então, quando o céu de Santana se ilumina, a memória também acende. Celebramos, sim, a beleza dos fogos, a alegria que une gerações e transforma a noite em festa. Mas lembramos, com respeito, que o fogo pede cuidado. Que a arte da pólvora exige saber, proteção e responsabilidade. Porque a luz que encanta só é completa quando não deixa sombra de dor.

            Assim, a cidade segue olhando para o alto — com olhos de criança e coração de quem aprendeu —, desejando que cada clarão seja apenas alegria, e que o céu continue sendo lugar de sonho, nunca de perda.


 

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