quarta-feira, novembro 12, 2025

O CINEMA DE PAPEL

 

            Era um domingo quente, desses que o sol parece queima até os pensamentos. As ruas de Santana do Ipanema ferviam de gente. O vento soprava fraco. No centro da cidade, o Cine Alvorada brilhava como um palácio moderno — o orgulho da capital do sertão.

            Os meninos chegavam antes da hora, formando fila para a matinê. Alguns vinham de longe, a pé ou de bicicleta. As meninas vinham de tranças, vestidos rodados e moedas apertadas nas mãos. No cartaz, pendurado na parede do cinema, lia-se em letras grandes:

“Hoje: Tarzan e o Vale Perdido”.

            Ao lado do cinema, o cheirinho doce da sorveteria se misturava ao de pipoca e laranja. Dona Francisca, com seu banquinho de madeira, vendia balas coloridas, cigarros avulsos e, para os mais miúdos, laranjas descascadas com capricho.

— “Quer uma, menino?” — perguntava ela, o rosto marcado pelo sol.

— “Quero não, dona Chica. Tô juntando pra ver o Tarzan!”

            Lá dentro, o Cine Alvorada era outro mundo. As paredes tinham pinturas de vaqueiros, bois e mandacarus, feitas por um artista local. A escadaria alta levava à sala escura, onde o projetor zunia como um inseto nervoso. A criançada ria, gritava, batia palma — e quando o herói aparecia na tela, era como se o sertão inteiro ficasse em silêncio.

            Mas nem todos conseguiam entrar. Era caro. Três cruzeiros era dinheiro demais pra muita família. E foi aí que nasceu a ideia — a ideia do “Cinema de Papel”.

            Atrás do prédio do cinema, ficavam os restos dos rolos de filme — tiras cortadas, pedaços queimados ou borrados, jogados fora pelo projecionista. Um grupo de garotos — Zezinho, Tonho de Dioclécio, e a pequena Amália — descobriram aquele tesouro escondido. As fitas brilhavam ao sol, cheias de figuras minúsculas.

— “Olha aqui! É o Tarzan!” — gritou Amália, segurando o pedacinho entre os dedos.

— “Pois é, vamo fazer nosso cinema!” — disse Tonho, já cheio de ideias.

            Em poucos dias, transformaram uma caixa de sapatos em projetor. Fizeram um buraco na frente, botaram uma lâmpada transparente cheia de água e uma lanterna atrás. Nas paredes da casa de Zezinho, nascia o “Cine Sertão”. A entrada custava o mesmo que uma bala de hortelã — um papel de cigarro vazio ou uma tampinha de refrigerante.

            As crianças se acotovelavam pra ver as imagens se mexendo, meio tremidas, meio mágicas. Quando a figura do herói aparecia — às vezes de cabeça pra baixo — o público aplaudia. A gargalhada de Amelinha ecoava alto.

            Dona Chica, ao saber da novidade, foi ver. Ficou ali, olhando as sombras dançando na parede, e disse:

— “Oxente... é mais bonito que o de lá, viu?”

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