sábado, novembro 15, 2025

CARNAVAL EM SANTANA DO IPANEMA: ONDE O PROFANO E O SAGRADO DANÇAM JUNTOS

 

            Em Santana do Ipanema, o Carnaval nunca começa quando o calendário manda. Lá, a festa nasce antes, nos ensaios apressados das escolas de samba, no batuque improvisado dos blocos, no riso frouxo das crianças com seus sacos de polvilho prontos para o mela-mela. A cidade inteira parece entrar num compasso próprio, como se cada rua, cada ladeira, cada quarteirão tivesse seu próprio coração pulsando em ritmo de frevo e marchinha.

            Os blocos tradicionais — o do Bacalhau, o Urso Preto, os Cangaceiros — surgem como velhos amigos que a cidade reencontra todo ano. Entre eles se misturam figuras fantasiadas das mais inesperadas beldades: tem moça que na verdade é rapaz, tem barba por fazer florescendo por baixo da maquiagem borrada, e tem sempre alguém vestido de noiva, arrastando véu, rendas e histórias pelas calçadas quentes. E, claro, os blocos dos sujos, aqueles que aparecem sem aviso, pintados, suados, felizes.

            No sábado de Zé Pereira, o Tênis Clube Santanense vira outro mundo. As portas se abrem e as marchinhas começam, vivas na boca da banda contratada de longe. Lá dentro, ninguém é mais rico ou mais pobre, mais importante ou menos: é tudo um grande salão circular onde cada um brilha do seu jeito. As mesas ficam em volta, cheias de copos, de histórias e de risos, enquanto no centro as duplas giram e giram sem parar.

            Há sempre aquela senhora com a toalhinha de rosto, que tanto serve para enxugar o suor quanto para guiar o parceiro nas voltas, como se fosse um laço macio que conduz o ritmo. E tem o folião com o copo erguido, que dá um passo para frente, dois para trás, repetindo entre gargalhadas:

— Eu chego já... eu chego já!

            Ninguém sabe para onde ele diz que vai, mas todo mundo adora o caminho que ele faz.

            A festa no clube só termina quando o relógio teima em marcar cinco da manhã, e mesmo assim é preciso pedir para o povo ir embora.

            Mas no domingo, às sete horas em ponto, todo mundo está na Matriz de Senhora Santana, vestidos como se tivessem dormido cedo — mas ninguém dormiu. O padre Cirilo fala, mas o coração dos fiéis está em outro lugar: nas fantasias guardadas em casa, no cheiro de goma e purpurina, no batuque que parece ecoar das ruas.

            Quando o padre diz “vão em paz”, ninguém espera o resto. A frase termina no ar vazio das portas batendo. O Carnaval, afinal, espera.

            De porta em porta passam os blocos. E em cada porta aberta há uma mesa com cachaça, um prato de tira-gosto e uma gargalhada diferente. O bloco do Bacalhau canta forte:

“O bacalhau só presta com café,

vamos beber agora na casa do seu José!”

             E lá vai a multidão entrando na casa de seu José, como se fosse a cozinha de cada um deles.

            Reginaldo, vestido de noiva — véu torto, batom borrado, sorriso largo — canta pelo caminho:

“A cara de rapariga é um barbado, não há quem diga!”

            E ninguém resiste: ri, acompanha, abraça.

            Remi surge logo atrás, cantando com orgulho “Santana dos Meus Amores”, seu hino particular da cidade. E quem ama Santana canta junto — seja por tradição, por alegria ou pela simples vontade de pertencer àquele instante.

            Na segunda-feira, as escolas de samba se preparam para o grande desfile. Duas apenas — mas para Santana, são como dez. De um lado, a escola do Camoxinga; do outro, a do Monumento. Separadas por um riacho coberto pela famosa ponte do padre, mas unidas pela paixão da bateria. A cidade inteira se aperta nas calçadas para ver quem dança mais bonito, quem brilha mais forte, quem arrasta mais emoção.

            Na terça, ninguém sabe quem ganhou... mas também não importa. O importante é ter vivido.

            E então chega a madrugada da Quarta-feira de Cinzas. O Tênis Clube fecha às cinco da manhã, mas ninguém se despede. A banda sai pelas ruas, conduzindo a última procissão profana do ano. Os foliões seguem atrás, cansados, felizes, ainda brilhando de purpurina, cantando como se o peito fosse estourar:

“Ô quarta-feira ingrata,

chegou tão depressa,

só pra contrariar!”

            E, quando o sino da matriz toca às sete, chamando para a Missa das Cinzas, muitos vão — olhos vermelhos, corpo dolorido, mas alma leve. Ali, diante do altar, o sagrado e o profano se encontram pela última vez antes da quaresma. Um pede silêncio, o outro deixa uma última risada escapar.

            Santana do Ipanema respira fundo.

            O Carnaval termina.

            Mas a alegria, essa nunca vai embora.

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