quarta-feira, dezembro 03, 2025

A IGREJA NO CORAÇÃO DA INFÂNCIA

           Na Santana do Ipanema dos anos de 1960 e 1970, o mundo das crianças era pequeno em tamanho, mas enorme em significado. A família, a escola e a igreja formavam um triângulo perfeito, onde cada lado sustentava o outro, organizando os dias, as rotinas e até os sonhos de quem crescia naquele pedaço quente de Alagoas. No meio desse triângulo havia sempre a rua: os becos poeirentos, o rio Ipanema e as aventuras que faziam o tempo correr mais depressa.

            A família era presença constante. Era quem acordava cedo, quem chamava para o café, quem mandava fazer as tarefas e quem espalhava conselhos sobre o certo e o errado. Mas havia um outro lugar — grande, solene e cheio de mistério — que dava forma à vida comunitária: a Igreja Matriz de Senhora Santana. A igreja organizava o tempo. Organizava as festas, as missas, os domingos, o calendário inteiro da cidade. Nada acontecia sem que o sino da matriz anunciasse: era hora da missa, da procissão, da novena, da quermesse ou da tão esperada primeira comunhão.

            E era justamente a primeira comunhão que transformava o cotidiano das crianças.

            Uma vez por semana, no contraturno da escola, os meninos e meninas caminhavam até a matriz carregando um caderno e um lápis. Sentavam nos bancos de madeira e esperavam a catequista — a professora Letícia Santana, que também ensinava no Grupo Padre Francisco Correia. Ela falava com voz calma, mostrava a Bíblia, ensinava cantos, explicava parábolas, contava histórias que misturavam fé e moral. A igreja tinha seus rituais, e todos sabiam que os sacramentos eram passos obrigatórios para formar “gente de bem”: batismo, eucaristia, confirmação… Cada passo era acompanhado não só pela fé, mas pela comunidade inteira.

            Quando era anunciado o dia da primeira comunhão, parecia que a cidade se movia ao mesmo tempo. As mães eram chamadas à matriz para receber as orientações. E dali começava outra romaria: o armarinho das Irmãs Marques para os catecismos e velas; as Pernambucanas ou a loja de Gracita para escolher os tecidos; a sapataria de seu Marinheiro para comprar os sapatos Vulcabrás; e por fim, a costureira, que receberia o tecido branco e azul com a missão de confeccionar a roupa do grande dia. Depois disso tudo, ainda faltava passar na doceira, porque criança que comunga também precisa celebrar.

            Para os pequenos, porém, havia um momento que enchia o peito de medo: a confissão. Um dia antes da comunhão, a fila na sacristia serpenteava. O padre Cirilo sentado de um lado; do outro, cada criança ajoelhada, de mãos suadas, coração disparado, tentando se lembrar de pecados que nem sabia se tinha. Na noite anterior, muitos não dormiam, pensando no que dizer. Que pecados uma criança podia ter?

            Quando o padre perguntava:

— Conte seus pecados, era preciso responder. Mesmo sem saber o que era pecado, mesmo sem entender por que aquilo tudo era tão grande. E então surgiam pecados inventados, bobos, mas ditos com a seriedade de quem acreditava que o céu e o inferno dependiam daquelas palavras:

— Eu jogo pedra no beco do Panema, confessava um menino, tremendo.

            O padre ouvia, fazia uma pausa solene e decretava:

— Reze dois Pai-Nossos e duas Ave-Marias. E não peque mais.

            Apesar do medo, aquele ritual ensinava — talvez mais pelo sentimento do que pelas palavras — que havia responsabilidade, compromisso, pertencimento. Ensinar que ações tinham peso. Que a vida em comunidade exigia respeito, ordem, convivência. A igreja, com seus ritos e exigências, era também um fio invisível que costurava a cidade inteira: unia as famílias, marcava o ritmo do ano, guiava as crianças para a vida adulta e, sem que elas percebessem, construía uma base moral que ecoaria para sempre.

            Por isso, quem cresceu na Santana daqueles tempos lembra não apenas do catecismo, das roupas brancas e azul ou da fila da confissão. Lembra de como a igreja organizava a vida. Lembra da sensação de fazer parte de algo maior. Lembra, principalmente, da comunhão — não só com Deus, mas com a comunidade inteira.

            A primeira comunhão não era apenas um sacramento. Era um rito de passagem, uma aula de vida, uma pequena engrenagem do grande relógio social que a igreja mantinha funcionando.

            E assim, entre o som do sino, o cheiro das roupas novas, o conselho da professora, o olhar sério do padre e o amor das mães, cresciam as crianças de Santana do Ipanema — moldadas pelo tempo, pela fé e pelo sentimento de que a cidade, unida pela igreja, era uma grande família.

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