Naquele tempo, Santana do Ipanema parecia maior do que o mundo. Cada rua tinha seu próprio segredo, cada esquina guardava uma aventura diferente, e as crianças eram donas de tudo: do barulho, da poeira, do riso solto, das invenções improváveis.
Os carrinhos artesanais surgiam de tábuas esquecidas,
rolamentos encontrados sabe-se lá onde e muita imaginação. Desciam as ladeiras
como verdadeiros trovões de madeira, sem freio, sem medo, apenas a coragem no
peito e o corpo preparado para servir de para-choque. Depois vinham os
arranhões, o ardor do mertiolate laranja, o “assopra que passa”, e logo o
menino queria descer de novo.
O cinema acontecia dentro de caixas de sapato, iluminado
pela lanterna e pela fantasia. A bola rolava entre as ilhas que o Rio Ipanema
formava na estiagem, e as carteiras de cigarro viravam dinheiro nos mercados
imaginários onde se comprava bala, goma e até sonhos. Nas margens do rio, as
crianças aprendiam a nadar enfrentando enchentes e secas, cada fase trazendo
seu próprio encanto: ora correnteza forte, ora pedras quentes ao sol onde se
sentava para secar o corpo.
A feira era um espetáculo à parte. Andar entre barracas e
ouvir o pregão era uma viagem: cheiro de tempero, de fruta madura, de tecido
novo, tudo misturado com o vozerio que só a feira de Santana sabia fazer. As
festas de São João, de São Cristóvão e da padroeira enchiam o ar de fogueira,
bandeirinha e sanfona, iluminando a cidade e acendendo no peito o tipo de
alegria que não se explica, só se sente.
Nos dias de chuva grossa, a criançada corria para debaixo
das bicas d’água. Era ali que se descobria a força do céu: água descia com
ímpeto, varria a rua e lambuzava todo mundo de gargalhada. E, entre uma
trovoada e outra, alguém sempre gritava: “É só o trovão fechando a porta!”
As brincadeiras nunca tinham hora pra acabar. Jogar ximbra em
todas as modalidades — triângulo, buraco e o que mais inventassem. Corridas
apostadas que valiam um punhado de balas. O cavalo de madeira riscando o chão
poeirento. Pular corda até a perna pedir arrego. Polícia e ladrão entre as
sombras dos muros. Arminhas de espoleta fazendo estalo que ecoava na rua
inteira. Dias inteiros vividos lá fora, sem limite e sem relógio, com o sol
marcando o tempo.
No domingo, a missa juntava todo mundo, e as aulas durante
a semana vinham com respeito sério aos professores, que eram quase figuras
mágicas — sabiam tudo, resolviam tudo. O rádio tocava os sucessos dos anos 60 e
70, embalando tarefas, cochilos e sonhos. E os desfiles cívicos enchiam a
cidade de orgulho, chapéu engomado, roupa limpa e o peito estufado de
importância.
Assim cresciam as crianças de Santana do Ipanema: livres,
inventivas, valentes e curiosas. Cada rua, cada bairro, cada grupo tinha sua
própria história — e todas, tecidas juntas, faziam o tecido vivo de uma cidade
sertaneja que soube criar seus filhos com simplicidade, coragem e afeto.
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