segunda-feira, dezembro 01, 2025

QUANDO A INFÂNCIA ERA DONA DAS RUAS DE SANTANA DO IPANEMA

 

           Naquele tempo, Santana do Ipanema parecia maior do que o mundo. Cada rua tinha seu próprio segredo, cada esquina guardava uma aventura diferente, e as crianças eram donas de tudo: do barulho, da poeira, do riso solto, das invenções improváveis.

            Os carrinhos artesanais surgiam de tábuas esquecidas, rolamentos encontrados sabe-se lá onde e muita imaginação. Desciam as ladeiras como verdadeiros trovões de madeira, sem freio, sem medo, apenas a coragem no peito e o corpo preparado para servir de para-choque. Depois vinham os arranhões, o ardor do mertiolate laranja, o “assopra que passa”, e logo o menino queria descer de novo.

            O cinema acontecia dentro de caixas de sapato, iluminado pela lanterna e pela fantasia. A bola rolava entre as ilhas que o Rio Ipanema formava na estiagem, e as carteiras de cigarro viravam dinheiro nos mercados imaginários onde se comprava bala, goma e até sonhos. Nas margens do rio, as crianças aprendiam a nadar enfrentando enchentes e secas, cada fase trazendo seu próprio encanto: ora correnteza forte, ora pedras quentes ao sol onde se sentava para secar o corpo.

            A feira era um espetáculo à parte. Andar entre barracas e ouvir o pregão era uma viagem: cheiro de tempero, de fruta madura, de tecido novo, tudo misturado com o vozerio que só a feira de Santana sabia fazer. As festas de São João, de São Cristóvão e da padroeira enchiam o ar de fogueira, bandeirinha e sanfona, iluminando a cidade e acendendo no peito o tipo de alegria que não se explica, só se sente.

            Nos dias de chuva grossa, a criançada corria para debaixo das bicas d’água. Era ali que se descobria a força do céu: água descia com ímpeto, varria a rua e lambuzava todo mundo de gargalhada. E, entre uma trovoada e outra, alguém sempre gritava: “É só o trovão fechando a porta!”

            As brincadeiras nunca tinham hora pra acabar. Jogar ximbra em todas as modalidades — triângulo, buraco e o que mais inventassem. Corridas apostadas que valiam um punhado de balas. O cavalo de madeira riscando o chão poeirento. Pular corda até a perna pedir arrego. Polícia e ladrão entre as sombras dos muros. Arminhas de espoleta fazendo estalo que ecoava na rua inteira. Dias inteiros vividos lá fora, sem limite e sem relógio, com o sol marcando o tempo.

            No domingo, a missa juntava todo mundo, e as aulas durante a semana vinham com respeito sério aos professores, que eram quase figuras mágicas — sabiam tudo, resolviam tudo. O rádio tocava os sucessos dos anos 60 e 70, embalando tarefas, cochilos e sonhos. E os desfiles cívicos enchiam a cidade de orgulho, chapéu engomado, roupa limpa e o peito estufado de importância.

            Assim cresciam as crianças de Santana do Ipanema: livres, inventivas, valentes e curiosas. Cada rua, cada bairro, cada grupo tinha sua própria história — e todas, tecidas juntas, faziam o tecido vivo de uma cidade sertaneja que soube criar seus filhos com simplicidade, coragem e afeto.

             E quem viveu aquilo carrega até hoje a certeza de que, naquele chão quente do sertão, a infância era uma festa que nunca terminava completamente. Ela fica guardada, quieta, mas basta fechar os olhos para que tudo volte: o rio, o carrinho, o cheiro da feira, o riso dos amigos, e a alegria sem medida de ser criança em Santana do Ipanema.

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