A Santana do Ipanema dos anos de 1970 tinha uma cadência própria, uma respiração que misturava o barulho das carroças, o chiado das casas de telha quente e o movimento das ruas de chão batido com o correr das crianças que faziam da cidade o seu grande quintal. E foi nesse cenário, ainda ingênuo, ainda provinciano, que surgiu a Polícia Mirim, uma das iniciativas mais marcantes para quem viveu a infância naquela década.
A Polícia Mirim não era polícia de verdade — mas na
cabeça da meninada era quase como se fosse. Funcionava como um pequeno pelotão
cívico, organizado por alguns professores do Grupo Escolar Padre Francisco
Correia e apoiado pela prefeitura, que via naquilo uma forma de ensinar disciplina
e civismo, coisas muito valorizadas na época.
O uniforme
A memória mais viva de todos era o uniforme. Camisa
branca muito bem passada — passada daquelas que a mãe dizia “cuidado pra não
amassar” —, calça azul-marinho que quase sempre ficava curta depois de dois
meses de uso, cinto preto e o boné, que era o orgulho do pelotão. O boné tinha
uma pala firme, e muitos meninos tentavam deixá-la mais reta apertando entre os
livros da escola.
Os sapatos, esses variavam. Nem todo mundo tinha sapato
“de desfile”. Uns iam com Kichute, outros com sapato velho engraxado que a mãe
polia com jornal.
Os ensaios
Os treinos aconteciam no pátio de cimento quente do Padre
Francisco Correia, geralmente no fim da tarde. O sol ainda batia forte no fim
dos anos 1970, e o calor subia do chão como um vapor que entortava o ar. O
professor — às vezes um sargento reformado que ajudava no projeto — caminhava
de um lado para outro ensinando a ordem unida:
— Sentido!
— Direita, volver!
— Marche!
E a criançada ia, meio desengonçada, mas orgulhosa. Para
muita gente, era a primeira vez que alguém pedia disciplina de verdade.
As apresentações
O auge era sempre o desfile de 7 de setembro. A cidade se
enfeitava, as famílias se arrumavam cedo, e a avenida principal ficava tomada.
A Banda Marcial começava os primeiros toques e o pelotão da Polícia Mirim vinha
logo atrás, em passo marcado, tentando manter o ritmo da caixa.
As pessoas batiam palmas. Alguns pais se emocionavam. Um
ou outro menino levantava o peito, tentando parecer mais alto. Era o dia em que
a cidade via a si mesma organizada, bonita, com a criançada representando o
futuro.
A disciplina e as
pequenas missões
De vez em quando, o grupo era chamado para ajudar em
pequenos eventos: organizar fila na vacinação, auxiliar na entrega de merenda
em alguma festividade da escola, ou até orientar os alunos mais novos na
entrada da aula.
Nada de autoridade de verdade. Mas para quem tinha dez ou
onze anos, aquilo dava um senso de importância que até hoje fica guardado.
A marca que ficou
A Polícia Mirim durou alguns anos e, como muitas coisas
daquela época, acabou se perdendo no tempo, engolida pelas mudanças políticas,
pela modernização e pelo novo ritmo da cidade. Mas quem viveu lembra. Lembra do
boné, do calor do pátio, da voz do professor ecoando, do orgulho besta — e
bonito — de marchar na avenida.
Era uma Santana simples, mas cheia de invenções sociais
que acabavam virando lembrança afetiva. A Polícia Mirim foi uma delas: um
pequeno capítulo de civismo infantil num tempo em que a cidade parecia grande
porque a gente era pequeno.
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