quarta-feira, novembro 19, 2025

SANTANA DO IPANEMA: FRAGMENTOS DE UMA CIDADE EM MOVIMENTO

 

            Há cidades que se contam por ruas; Santana do Ipanema, nas décadas de 1960 e 1970, se contava por territórios de alma. Não era apenas São Pedro, Monumento ou o Centro. Eram camadas vivas de um corpo maior: São Vicente, Camuxinga, a região da Barragem, o Rabo da Gata, o Aterro — cada pedaço com sua gente, seu modo de viver, suas próprias leis silenciosas.

São Vicente: O Silêncio que Ampara

            No alto do bairro de São Vicente, onde o vento parecia soprar mais devagar, estava a Casa de Repouso São Vicente de Paula. As janelas sempre entreabertas deixavam escapar conversas murmuradas, risos esquecidos, histórias que se perdiam no tempo. Ali viviam idosos sem família, e outros que lutavam contra os labirintos da mente. Era um lugar de quietude e de afeto tardio, visitado por poucos, mas lembrado por todos.

O Aterro e Suas Travessias

            Para muitos, o Aterro era um lugar a evitar; para outros, era caminho obrigatório. Ali sobreviviam mulheres que trocavam carícias por sustento, num pedaço da cidade onde julgamentos e silêncios caminhavam lado a lado. E, apesar das proibições veladas, dezenas de crianças passavam por ali todos os dias a caminho da Escola Estadual Deraldo Campos. Quem viveu essa época conhece bem aquele trecho onde inocência e dureza dividiam a mesma rua.

Camuxinga: O Pulso da Cidade

            Da estrada do Aterro, chegava-se ao Maracanã, ponto de encontro da Camuxinga. As calçadas eram altas, devido aos terrenos serem em declive e, ao mesmo tempo, dava perspectiva à vida que corria. A Camuxinga era um bairro completo: tinha o hospital, tinha a igreja de São Cristóvão e tinha histórias que só quem viveu consegue contar.

            A festa de São Cristóvão marcava o calendário santanense. Era mais do que religião: era espetáculo, era comunidade. A procissão de carros formava uma fila interminável, serpentando pelas ruas. À frente, num caminhão decorado, ia a imagem do santo, e o motorista fazia soar a buzina como um toque de bênção. Cada buzina que ecoava atrás parecia uma prece, um agradecimento, um pedido. O som se misturava aos hinos religiosos nos alto-falantes, criando uma trilha sonora que se escutava com o corpo inteiro.

O Estádio e os Domingos de Clássico

            Subindo para o Alto do Cemitério, chegava-se ao estádio. Era ali que a cidade parava para ver Ipiranga e Ipanema disputarem a glória. Nos domingos de clássico, não havia quem não encontrasse um jeito de dar uma passada pelo campo, nem que fosse para ouvir o burburinho da torcida, sentir o cheiro da poeira levantada pelos pés ansiosos dos jogadores, ou discutir, como sempre, quem tinha o melhor ataque.

Barragem e o Rumo das Águas

            Do Maracanã, descendo pela estrada de asfalto novo, chegava-se à Barragem. Uma ponte estreita cortava o Rio Ipanema, cercada por muros erguidos para segurar as águas nas épocas de enchente. Para as crianças, era aventura. Para os adultos, era vigilância. Para todos, era um divisor de histórias — e de destinos.

No Rastro do Rabo da Gata

            Ao atravessar a ponte nova, no final da Barão do Rio Branco, despontava o rabo da gata — uma região de estrada longa, ladeada de mato, pequenas casas e mistério. Esse caminho seguia rumo a Olhos D’Água e Pão de Açúcar, cidade moldada às margens do Velho Chico. Era uma estrada que carregava poeira, sonhos, promessas e despedidas.

            No alto da serra, dominando a paisagem, estava a famosa micro-ondas, eternizada por Remi Bastos. Para muitos, era só uma torre. Para os santanenses, era um marco: sinal de modernidade chegando, cortando a solidão da caatinga com seus sinais invisíveis.

Uma Cidade de Muitas Cidades

            Santana daquelas décadas era feita de fronteiras e encontros. As divisões naturais da cidade criavam pequenas culturas particulares, mas todas se entrelaçavam na vida diária. O rio, as pontes, os bairros, os times de futebol, as festas, a poeira das estradas — tudo compunha um mosaico vivo.

            Hoje, quem viveu aquele tempo guarda essas memórias como quem guarda um álbum raro. Não pelas fotografias, mas pelos sons, pelos cheiros, pelos medos e alegrias que fizeram parte de uma Santana do Ipanema que já não existe mais — a não ser dentro de quem a viveu.

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