Há cidades que se contam por ruas; Santana do Ipanema, nas décadas de 1960 e 1970, se contava por territórios de alma. Não era apenas São Pedro, Monumento ou o Centro. Eram camadas vivas de um corpo maior: São Vicente, Camuxinga, a região da Barragem, o Rabo da Gata, o Aterro — cada pedaço com sua gente, seu modo de viver, suas próprias leis silenciosas.
São Vicente: O Silêncio
que Ampara
No alto do bairro de São Vicente, onde o vento parecia
soprar mais devagar, estava a Casa de Repouso São Vicente de Paula. As janelas
sempre entreabertas deixavam escapar conversas murmuradas, risos esquecidos,
histórias que se perdiam no tempo. Ali viviam idosos sem família, e outros que
lutavam contra os labirintos da mente. Era um lugar de quietude e de afeto
tardio, visitado por poucos, mas lembrado por todos.
O Aterro e Suas
Travessias
Para muitos, o Aterro era um lugar a evitar; para outros,
era caminho obrigatório. Ali sobreviviam mulheres que trocavam carícias por
sustento, num pedaço da cidade onde julgamentos e silêncios caminhavam lado a
lado. E, apesar das proibições veladas, dezenas de crianças passavam por ali
todos os dias a caminho da Escola Estadual Deraldo Campos. Quem viveu essa
época conhece bem aquele trecho onde inocência e dureza dividiam a mesma rua.
Camuxinga: O Pulso da
Cidade
Da estrada do Aterro, chegava-se ao Maracanã, ponto de
encontro da Camuxinga. As calçadas eram altas, devido aos terrenos serem em
declive e, ao mesmo tempo, dava perspectiva à vida que corria. A Camuxinga era
um bairro completo: tinha o hospital, tinha a igreja de São Cristóvão e tinha
histórias que só quem viveu consegue contar.
A festa de São Cristóvão marcava o calendário santanense.
Era mais do que religião: era espetáculo, era comunidade. A procissão de carros
formava uma fila interminável, serpentando pelas ruas. À frente, num caminhão
decorado, ia a imagem do santo, e o motorista fazia soar a buzina como um toque
de bênção. Cada buzina que ecoava atrás parecia uma prece, um agradecimento, um
pedido. O som se misturava aos hinos religiosos nos alto-falantes, criando uma
trilha sonora que se escutava com o corpo inteiro.
O Estádio e os Domingos
de Clássico
Subindo para o Alto do Cemitério, chegava-se ao estádio.
Era ali que a cidade parava para ver Ipiranga e Ipanema disputarem a glória.
Nos domingos de clássico, não havia quem não encontrasse um jeito de dar uma
passada pelo campo, nem que fosse para ouvir o burburinho da torcida, sentir o
cheiro da poeira levantada pelos pés ansiosos dos jogadores, ou discutir, como
sempre, quem tinha o melhor ataque.
Barragem e o Rumo das
Águas
Do Maracanã, descendo pela estrada de asfalto novo,
chegava-se à Barragem. Uma ponte estreita cortava o Rio Ipanema, cercada por
muros erguidos para segurar as águas nas épocas de enchente. Para as crianças,
era aventura. Para os adultos, era vigilância. Para todos, era um divisor de
histórias — e de destinos.
No Rastro do Rabo da Gata
Ao atravessar a ponte nova, no final da Barão do Rio
Branco, despontava o rabo da gata — uma região de estrada longa, ladeada de
mato, pequenas casas e mistério. Esse caminho seguia rumo a Olhos D’Água e Pão
de Açúcar, cidade moldada às margens do Velho Chico. Era uma estrada que
carregava poeira, sonhos, promessas e despedidas.
No alto da serra, dominando a paisagem, estava a famosa
micro-ondas, eternizada por Remi Bastos. Para muitos, era só uma torre. Para os
santanenses, era um marco: sinal de modernidade chegando, cortando a solidão da
caatinga com seus sinais invisíveis.
Uma Cidade de Muitas
Cidades
Santana daquelas décadas era feita de fronteiras e
encontros. As divisões naturais da cidade criavam pequenas culturas
particulares, mas todas se entrelaçavam na vida diária. O rio, as pontes, os
bairros, os times de futebol, as festas, a poeira das estradas — tudo compunha
um mosaico vivo.
Hoje, quem viveu aquele tempo guarda essas memórias como
quem guarda um álbum raro. Não pelas fotografias, mas pelos sons, pelos
cheiros, pelos medos e alegrias que fizeram parte de uma Santana do Ipanema que
já não existe mais — a não ser dentro de quem a viveu.
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