Em Santana do Ipanema, a infância não era apenas uma fase — era um território livre, amplo como o céu do sertão. Nas ruas quase sem carros, as crianças fabricavam mundos inteiros com duas pedras fazendo o papel de trave, uma bola de plástico ou mesmo uma improvisada, uma bola de couro comprada na loja da família Alcantara. Entre uma partida e outra, unhas arrancadas, joelhos ralados e braços engessados não eram acidentes: eram medalhas de honra da vida de menino e menina.
O rio Ipanema, serpenteando a cidade, era mais que um
rio: era extensão da casa. Ali se banhavam os pequenos, enquanto as lavadeiras
batiam roupas nas pedras e estendiam lençóis e camisas sobre o capim para curar
ao sol forte. O barulho das batidas na pedra se misturava ao riso das crianças,
que aprendiam a nadar antes mesmo de aprender a escrever seus próprios nomes.
E entre subir e descer as ladeiras, a escola se encaixava
como complemento do mundo: era ali que se descobria que existia vida além das
fronteiras secas do sertão. A igreja, por sua vez, não era apenas templo — era
o coração espiritual de Santana. Católicos, batistas, assembleianos, espíritas…
cada grupo vivia sua fé, mas todos sabiam que, no fundo, a cidade inteira
respirava religiosidade. Era parte da identidade, assim como o pó das estradas
e o calor do meio-dia.
Mas havia dias em que o coração das crianças batia
diferente.
No São João, por exemplo, quando o cheiro de milho assado
e licor invadia as ruas, e as fogueiras iluminavam a noite como pequenas
estrelas terrestres. Na festa da Padroeira, quando o parque de diversões
chegava e fazia a cidade parecer maior do que realmente era. No Natal, quando a
Missa do Galo dava um ar de mistério à madrugada, e cada criança ia dormir
sabendo que, ao acordar, um embrulho deixado por Papai Noel estaria aos pés da
rede ou da cama. Sapatos novos, roupas cheirando a pano recém-costurado… tudo
era festa, tudo era encanto.
Mas existia um dia especial — um dia que pertencia, mais
do que qualquer outro, ao universo infantil: 27 de setembro, dia de São Cosme e
São Damião.
Nesta data, Santana parecia pulsar em ritmo diferente.
Dias antes, corria o boato pelas ruas de chão batido: “Já
tão entregando os cartões na casa do Major Darcy!” O coração da meninada disparava.
Os cartões — carimbados, rubricados — eram garantia de uma sacolinha com doces
e brinquedinhos. Algumas crianças guardavam o cartão como um tesouro. Outras,
que não conseguiam, iam na esperança, porque, no fundo, todos sabiam que sempre
tinha um pacote a mais.
A casa da família de Major Darcy, no centro da cidade, se
transformava em ponto de peregrinação infantil. Erguida em local de destaque,
ela se enfeitava não com bandeirolas, mas com vozes, risadas e pés descalços
batendo no chão apressados. Naquele dia, a fila era tão grande que parecia
abraçar o quarteirão.
E os olhos das crianças
brilhavam — não apenas pelo doce, mas pela sensação de pertencimento, de
cuidado, de graça recebida.
A família fazia aquilo por promessa, por fé, por devoção
e, sobretudo, por caridade. Caridade que não humilhava, mas alegrava. Caridade
que aproximava. Caridade que, por algumas horas, unia toda a cidade em torno de
um gesto simples e profundo: fazer uma criança sorrir.
Quando finalmente chegava a vez de cada pequeno, o pacote
caía nas mãos como um presente do céu. Um punhado de balas, um brinquedinho
barato, a lembrança de algum santo. Mas para o coração infantil, aquilo era
imenso. Era bênção. Era festa. Era prova de que o mundo podia ser generoso.
À tarde, as ruas se enchiam de crianças mastigando balas
coloridas, correndo com seus brinquedos, mostrando com orgulho o que haviam
recebido. E mesmo aquelas que tinham ido sem cartão voltavam para casa com as
mãos cheias, porque a cidade sempre dava um jeito de abraçar todos no final.
O sol se punha atrás das serras, tingindo o céu de
laranja. E naquele instante, a fé, a infância e a caridade se entrelaçavam como
se fossem parte de um mesmo tecido. Um tecido que, mesmo com o passar dos anos,
nunca se desfaz.
Em Santana do Ipanema, onde cada pedra da rua guarda uma
história, o dia de Cosme e Damião era um lembrete eterno: na simplicidade dos
gestos se escondem os milagres mais bonitos.
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