Dizem que toda cidade tem sua alma. A de Santana do Ipanema, porém, parecia ter duas: uma que crescia silenciosa rumo ao futuro, abrindo ruas novas e empurrando cercas para mais longe… e outra que permanecia ali, firme, dentro do grande círculo central onde tudo acontecia e nada mudava. Era como olhar para uma maquete viva: cada casa, cada comércio, cada pessoa já tinha seu lugar marcado, como personagens de uma peça que nunca saía de cartaz.
Quem chegava aos sábados para a grande feira —
agricultores vindos de Curralinho, Areias, Pedra d’Água, Lajeiro — era recebido
por aquele cenário conhecido, quase sagrado. O calçamento de paralelepípedo, a
algazarra começava, e o cheiro de carne de bode misturado ao de rapadura fresca
parecia anunciar que ali o tempo andava, mas devagar, obedecendo ao ritmo do
sertão.
Logo na entrada do centro, subindo pela Rua Antônio
Tavares, as primeiras referências surgiam como sinais de que se estava chegando
ao coração da cidade. Do lado direito, as Casas Pernambucanas exibiam seus
tecidos alinhados, dobrados com carinho, como se fossem joias. Do lado
esquerdo, a farmácia de seu Zeca seu Aleixo e Genival, que vendia remédios,
conselhos, simpatias e até apostas da loteria — porque seu Zeca, além de
boticário improvisado, era também o mensageiro da sorte.
Mais adiante, antes da curva que levava ao movimento do
centro, vinha a loja de discos de Val. Era ali que a juventude de Santana
encontrava o eco do mundo: Roberto Carlos, Waldick Soriano, Dalva, Nelson
Gonçalves. Alguns mais velhos lembravam que antes ali tinha sido a bodega de
seu Marinho, e às vezes até parecia possível ouvir o tilintar das garrafas que
Marinho organizava no fim das tardes quentes.
Atravessando a rua e aproximando-se do círculo central,
surgia o sempre animado Bar Continental, ponto obrigatório dos homens que
queriam um gole gelado e uma conversa despretensiosa. Ao lado, a loja de
tecidos de Gracita, enfeitava a calçada com cores vivas. E, um pouco adiante,
vinha o ponto mais doce da cidade: a Sorveteria Maringá. Crianças correndo,
adolescentes rindo sem motivo, casais de mãos suadas trocando olhares tímidos…
Ali era onde a vida aprendia a ser leve.
Subindo em direção à Rua Nova, as referências
continuavam: a casa de ferragens de Rubens, sempre perfumada de óleo e metal
novo; a padaria de Raimundo, onde o cheiro quente do pão chamava mesmo quem já
tinha tomado café; e a livraria de Ana Agra, responsável por abastecer
estudantes, professores e sonhadores com cadernos, lápis e pequenas histórias
impressas.
Descendo novamente para Barão do Rio Branco, o movimento
voltava a crescer. Havia a Casa de ferragens Cristino, a loja de alfaiataria
com tecidos elegantes, de propriedade do casal Benedito e Virginia Nepomuceno, Casa
do Ferrageiro, e a farmácia de seu Alberto Agra, um homem que parecia conhecer
tanto de remédio quanto de mapas e montanhas distantes.
Na entrada da Barão, o bar de Sebastião do Padre marcava
território. Diziam “do Padre” porque era sobrinho do padre Cirilo, e isso
bastava para ser conhecido por toda a cidade.
A poucos passos dali o cheiro de couro trabalhado
denunciava a oficina e armazém de seu Evilásio, herdeiro das técnicas antigas de
fazer sapatos aprendidas com seu Aprígio, pai de José Ricardo, o maestro da
banda Santa Cecília — outro símbolo vivo da tradição do lugar.
E ao lado, firme como poste de esquina, estava o armazém
de Zezito de Deoclécio. Ali se vendia de tudo: arroz, açúcar, sal, óleo,
querosene, vela, sabão, café. Zezito era quase um prefeito da zona rural,
porque conhecia cada agricultor pelo nome, pela roça e, às vezes, pelas dívidas
também. Era ele quem abastecia muitos dos pequenos comércios da cidade, girando
a roda do sertão com generosidade e calma.
Mais adiante, outros armazéns compravam feijão, milho,
algodão. Um ciclo que parecia eterno: o que a terra dava, a cidade recebia,
transformava e devolvia em vida. Já os animais — galinhas, bodes, carneiros —
tinham seu espaço reservado mais próximo do rio Ipanema, onde o barulho era
grande e a poeira maior ainda.
Em frente a esses armazéns, no lado direito da rua, havia
comércios que se destacavam: a loja de tecidos Casas GG, enorme, movimentada,
um orgulho local; a distribuidora de bebidas, responsável por refrescar as
festas do sertão inteiro; e o armarinho que, como uma caixinha de costura viva,
vendia miudezas capazes de salvar qualquer dona de casa em apuros.
E assim era Santana do Ipanema naquela época: um lugar
onde cada porta aberta carregava uma história, onde cada pessoa tinha apelido,
parentesco e propósito, onde a cidade crescia, mas sem nunca perder o rosto.
Hoje, quem caminha pelas mesmas ruas talvez não encontre
os mesmos nomes nas fachadas. Mas basta fechar os olhos para ouvir, ainda
ecoando entre as paredes antigas, a voz do feirante chamando preço, o barulho
dos motores da Rural Willys chegando da roça, o sino da matriz tocando para a
missa, e o riso das crianças que corriam na calçada da sorveteria Maringá.
Porque cidades como Santana do Ipanema não desaparecem. Elas
apenas mudam de roupa. A alma, essa, fica para sempre.
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