Era quase 1970, e Santana do Ipanema ainda respirava o cheiro forte da terra quente, da poeira fina que colava nos pés e da calmaria típica do sertão. Naquele tempo, o mar era quase uma lenda. Falava-se dele como quem fala de um sonho distante — azul, grande, sem fim. Muitos santanenses nasciam, viviam e morriam sem ver aquele mundo de água que só existia na imaginação.
Mas, de vez em quando, alguma família se aventurava pela
BR-316, uma estrada de chão batido que serpenteava entre o mato ralo, buracos,
pedras e coragem. Era preciso fé e disposição para encarar a viagem. Os ônibus
até existiam, mas era mais comum ir de carona: político que ia resolver assunto
na capital, proprietários de um carro que levavam passageiros para dividir o
gasto do combustível, parentes que avisavam parentes… Era quase um ritual
sertanejo de movimento.
E assim aconteceu naquela semana.
O político da cidade — homem muito elogiado nas feiras e
nas calçadas — avisou que iria a Maceió com sua Rural Willys. Bastou a notícia
se espalhar para que uma das famílias amigas se animasse. A esposa, que tinha
parentes na capital, viu ali a chance de rever gente querida e, quem sabe,
mostrar às crianças o tão falado mar. Aquele mar que só existia nos sonhos.
Acertaram tudo: dia, hora e até o ponto exato da saída.
As crianças, tão ansiosas, passaram três noites sem dormir, imaginando ondas
enormes, peixes coloridos, areia fina e coisas que só conheciam pelos relatos
dos que tinham ido e voltado encantados.
Na véspera, a mãe improvisou uma mala com um lençol.
Dentro dele, colocou as roupas e, como manda a tradição, separou presentes para
os parentes: duas galinhas, um peru, queijo coalho, uma mão de milho, meio saco
de feijão… Coisas que tinham mais valor sentimental que financeiro.
Antes mesmo de o sol pintar o céu de vermelho por trás da
serra, a família já estava sentada à porta do político. O pai, que não
viajaria, ficou ali acompanhando um pedaço da madrugada, fumando os vinte
cigarros da carteira de Continental como quem queima o tempo. Outros viajantes
foram chegando, e logo a porta virou uma pequena feira, com conversas cruzadas,
risadas altas e elogios ao político — que, vale dizer, nunca eram esquecidos na
época da eleição.
De repente, a Rural Willys apareceu, ronronando e coberta
de poeira. Era como se a viagem começasse naquele exato instante.
O motorista abriu a mala, que logo se transformou num
depósito improvisado: sacos de mantimentos, animais vivos, trouxas, presente,
ferramentas e, por cima, algumas crianças acomodadas como podiam, rindo do
improviso. A parte interna do carro, que deveria levar cinco adultos, recebeu
oito — três espremidos na frente, cinco no banco traseiro — além da meninada
distribuída entre as pernas dos adultos e em cima dos sacos. Mais produtos
foram amarrados no bagageiro sobre o carro.
E assim seguiram.
A BR-316 parecia um caminho sem fim. A Rural levantava
uma nuvem de poeira que ia ficando para trás como o rabo luminoso de um cometa.
Passaram pela pedra do Padre Cícero, cantaram modinhas, conversaram sobre
política, falaram da vida, riram das lembranças.
Uma das crianças, porém, estava enjoada. Encostada no
vidro quente, olhava a estrada com uma tristeza muda — até que viu algo
estranho: um pneu rolando pela estrada e ultrapassando o carro.
— Mainha, olha! O pneu
quer chegar primeiro! — gritou eufórica.
O motorista, assustado com o alvoroço, freou a Rural. Ao
descer, constatou o impossível: o pneu que saíra correndo estrada afora era
justamente o pneu traseiro da Rural. Tinha se soltado e, por milagre — ou por
sorte de criança — não provocara acidente algum.
Depois de muita poeira, suor, levantação de carro e
aperto de porca, seguiram viagem. Horas mais tarde, cansados, sujos,
amontoados, mas felizes, chegaram à capital.
E lá estava ele.
O mar.
Grande, azul, vivo,
infinito — tão diferente de tudo o que conheciam.
As crianças correram para a beira da água, encantadas,
rindo como quem descobre um novo mundo. A mãe observava, emocionada, o sonho
que enfim se realizava. A família inteira parecia iluminada por aquele encontro
com o mar, como se o sertão tivesse aberto uma porta secreta para outra
realidade.
E é assim que muitos santanenses lembram daquele tempo:
duro, sofrido, mas cheio de coragem, alegria e histórias que o tempo nunca
apaga.
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