domingo, dezembro 21, 2025

ENTRE O AZUL E O ENCARNADO: MEMÓRIAS DE UM NATAL IBÉRICO NO SERTÃO



            Santana do Ipanema, eita terra que mora dentro da gente. Há cidades que passam por nós; Santana, não. Ela fica. Fica nas palavras dos mais velhos, no gesto repetido, na fé cantada, na memória que atravessa gerações como um rio antigo que nunca seca. Dezembro chegava trazendo mais que o Natal: trazia o reencontro com a cultura, com o tempo lento e com a certeza de pertencimento.

            Os mais velhos sabiam — e ensinavam — que o fim do ano era tempo de renovar o corpo e a alma. E assim, de boca em boca, de exemplo em exemplo, a tradição seguia firme, conduzida por mãos femininas, por vozes jovens e por um povo inteiro que fazia da praça central o seu grande palco. No meio do século XX, Iluminata, filha de Misael, minha avó, era uma das guardiãs desse saber antigo. Coordenadora do pastoril, ela ajudava a costurar, não apenas os figurinos, mas os laços invisíveis entre o sertão e a Península Ibérica.

            Minha mãe, ainda moça, aos quinze anos, foi uma das pastorinhas. Vestia cor, música e esperança. Como ela, tantas outras meninas da sociedade santanense se colocavam diante do público, não apenas para dançar, mas para dar continuidade a um ritual que atravessara oceanos. O tempo avançou, os nomes mudaram, mas o pastoril resistiu — porque tradição que cria raiz no povo não se perde, se transforma.

            Recordo uma noite de dezembro, entre o fim dos anos 60 e o começo dos 70. A praça central iluminada, o palanque armado, bancos e cadeiras dispostos ao redor como se o mundo coubesse ali. O pastoril ia começar. Aquele auto brasileiro, herdeiro direto dos dramas sacros ibéricos, trazia nas canções espanholas o fio que ligava o sertão nordestino a Belém da Judéia, numa viagem simbólica feita de canto, disputa e devoção.

            Dois cordões davam vida ao enredo: o azul e o encarnado. Meninas vestidas de cores opostas, mas unidas pela mesma fé e pelo mesmo chão. A Mestra comandava o encarnado; a Contra Mestra, o azul. No centro, a Diana, síntese das cores, ponto de equilíbrio. Ao redor, figuras livres — o anjo, a borboleta, a cigana, a camponesa — personagens que ampliavam o imaginário e misturavam o sagrado e o profano, marca profunda da herança ibérica no Nordeste.

            O povo não assistia calado. Aplaudia, torcia, discutia, brigava e comprava votos. Havia quem fosse azul até o fim, quem defendesse o encarnado com fervor. A disputa era intensa, mas festiva. Vencia quem vendesse mais votos, mas ganhava mesmo a cultura, fortalecida a cada apresentação. As músicas conduziam a noite: a apresentação dos cordões, as alvíssaras, a noite de Natal, o convite para ir a Belém, a disputa das cores e, por fim, a despedida — sempre carregada de emoção, como se cada encerramento fosse também uma promessa de retorno.

            Assim, entre cantos espanhóis e chão sertanejo, o pastoril firmou-se como prova viva da força da cultura ibérica no Nordeste brasileiro. Uma herança reinventada pelo povo, moldada pelo clima, pela fé e pela alegria de Santana do Ipanema. E enquanto houver memória, enquanto alguém se lembrar dessas noites de dezembro, o azul e o encarnado continuarão dançando na praça da lembrança, iluminando o passado e ensinando o futuro.


 

sábado, dezembro 20, 2025

ÀS MARGENS DO IPANEMA: FÉ, CULTURA E INFÂNCIA NOS ANOS 70


 

            Percorrer a margem esquerda do rio Ipanema, um pouco adiante do bairro de São Pedro, era atravessar uma fronteira invisível entre o cotidiano e o sagrado. Ali se estendia o Bebedouro, também chamado Maniçoba, um território de casas simples, erguidas com o esforço diário de agricultores, pedreiros, cozinheiras, lavadeiras, passadeiras, feirantes e vaqueiros. Gente que aprendia a vida no trabalho e ensinava, sem saber, lições profundas às crianças que por ali passavam.

            Nos anos 70, as crianças de Santana do Ipanema faziam do rio e de suas margens um grande quintal. Em meio às brincadeiras, iam descobrindo o Bebedouro como quem descobre um livro vivo. Cada passo era uma página, cada encontro uma história. Foi assim também naquela aula de campo do ginásio Santana, quando o professor Clerisvaldo conduziu seus alunos com pranchetas, folhas de papel A4, lápis e borrachas, ensinando que a geografia não mora apenas nos livros, mas se revela no chão batido, nas casas, nos caminhos e nas pessoas.

            Enquanto desenhavam mapas, os alunos aprendiam a ler o mundo. Observavam os tipos de construção, o traçado das ruas, o curso do rio. E, no meio desse aprendizado, surgiam as ruínas da antiga capela de São João Batista, construída, dizia-se, por volta de 1917. As paredes gastas pelo tempo guardavam rezas antigas, promessas sussurradas e a fé de gerações. Mais adiante, a capela de São Benedito pulsava viva, sobretudo nos dias de festa.

            Quando se aproximavam os festejos do santo, o Bebedouro se transformava. A comunidade se unia como um só corpo: organizava a banda de pífano e zabumba, preparava o cortejo e saía pelos bairros de Santana, passando de casa em casa. No centro, batiam às portas pedindo ajuda, e recebiam de tudo: alimentos, objetos, dinheiro, fé. Cada doação era um gesto de pertencimento, uma prova de que o sagrado se constrói coletivamente.

            À frente do cortejo iam as mulheres, vestidas de preto, com escapulários ao pescoço e a imagem de São Benedito cuidadosamente arrumada dentro de uma caixa, enfeitada com flores e protegida por um tecido de nylon. À frente da imagem, um espaço aberto para pedidos e moedas, onde o povo depositava dores, esperanças e agradecimentos. Logo atrás vinha a banda de pífano e zabumba, tocando sem cessar, acordando ruas, corações e memórias.

            Em volta, surgiam os Mateus, figuras coloridas e inquietas, com chapéus pontudos cobertos de espelhos, chicotes estalando no chão e rostos pintados de carvão. Eram o riso e o espanto, o profano dançando com o sagrado. As crianças corriam, riam, seguiam o cortejo, encantadas com aquele mundo em movimento. Sem perceber, aprendiam sobre fé, cultura, solidariedade e identidade.

            Esses eventos eram mais que festas: eram salas de aula abertas. Ali, as crianças aprendiam que a religião não se separa da vida, que a cultura nasce do povo e que a memória se constrói no coletivo. Os anos 70 em Santana do Ipanema ensinaram, com música, devoção e alegria, que crescer é também guardar dentro de si o som da zabumba, o brilho dos espelhos dos Mateus e a certeza de que pertencer a um lugar é carregar suas histórias para sempre.


 

sexta-feira, dezembro 19, 2025

DEZEMBRO QUE ENSINA A SONHAR



            No início de dezembro, quando o ano já começava a se despedir em passos lentos, Dona Penina abria o armário da sala e retirava o maço de folhas ainda mornas do mimeógrafo. Havia nelas um cheiro inconfundível de álcool, misturado à promessa de algo especial. Papai Noel surgia impresso em traços simples, rodeado por estrelinhas e palavras doces sobre o Natal. Cada folha era entregue como quem entrega uma missão silenciosa: dar cor ao próprio caminho.

            As crianças, com as mochilas gastas e os lápis de cor bem apontados, iniciavam a pintura com cuidado e esperança. Não era apenas um desenho; era a capa do caderno de avaliações, o rosto visível de tudo o que havia sido aprendido ao longo do ano. Dentro daquelas caixas de camisas guardadas na escola repousavam histórias de esforço, erros, acertos, letras ainda trêmulas que aos poucos ganhavam firmeza. Ao final do ano, tudo se transformava em livro — um retrato do crescimento, uma memória encadernada da infância. A educação, ali, ensinava mais que contas e palavras: ensinava a construir sentido.

            Enquanto isso, a cidade se vestia de festa. O centro de Santana do Ipanema pulsava com sons e cores. Das lojas de tecidos escapavam músicas natalinas, repetidas sem cansaço, anunciando que todos eram, de algum modo, filhos do mesmo sonho. As mães, com suas bolsinhas apertadas de dinheiro, iam e vinham carregando tecidos dobrados nos braços, levando junto a esperança de roupas novas para a noite santa. Armarinhos fervilhavam, botões eram forrados, linhas se cruzavam, e costureiras e alfaiates esticavam os dias até tarde, costurando mais que roupas: costurando alegria.

            Em casa, a família se unia na grande faxina de Natal. A água retirada da cisterna corria pelo chão, lavando poeiras antigas e abrindo espaço para o novo. O piso brilhava após a cera, refletindo o cuidado coletivo. Cada gesto tinha o peso de um ritual, pois preparar a casa era também preparar o coração. A árvore de Natal surgia como um altar de afetos. As mãos pequenas penduravam bolinhas, as maiores ajeitavam imagens, e, por fim, a estrela era colocada no alto — sinal de fé e direção. Ao lado, o presépio lembrava o nascimento simples de Jesus, ensinando, em silêncio, que a grandeza pode morar na humildade. A religião ali não era apenas doutrina; era encontro, esperança e gratidão.

            Com o fim das aulas, vinha a certeza da aprovação, a alegria compartilhada com a família, o descanso merecido. O livro de memórias escolares circulava entre olhares orgulhosos, confirmando que o aprendizado tinha raízes profundas. Agora era tempo de festa, de férias, de Natal — e com ele, de sonhos renovados.

            Na véspera do dia 24, a cozinha tornava-se o coração da casa. O fogão a carvão permanecia aceso, firme como um guardião, enquanto panelas se multiplicavam. Bolos eram batidos à mão, doces descansavam na geladeira, o pavê aguardava a ceia. Um peru era preparado com solenidade, símbolo de celebração. Tudo era feito em nome da alegria, da partilha e do nascimento de Cristo.

            À noite, a família seguia para a igreja. A homilia de Natal ecoava palavras antigas e sempre novas, a missa unia vozes e silêncios. Depois, havia ainda tempo para as risadas no parque de Moacir, antes do retorno para casa. A ceia encerrava o dia, mas não o encanto.

            Antes de dormir, as crianças colocavam meias próximas à árvore. Era um gesto simples, carregado de fé e imaginação. Ao amanhecer, os olhos se abriam rápido, buscando com ansiedade o chão aos pés da cama. Ali estavam os presentes — às vezes uma bola, um carrinho, uma boneca, uma bicicleta — objetos modestos, mas gigantes em significado. E antes mesmo do café, a rua se enchia de crianças exibindo seus tesouros, compartilhando risos e comparações.

            Assim era a infância em Santana do Ipanema: um tempo em que educação, religião, família e celebrações se entrelaçavam para sustentar sonhos. Cada dezembro ensinava que aprender é crescer, que crer é esperar, que celebrar é agradecer e que sonhar é o que mantém o ser humano em movimento. E, mesmo quando os anos passam, essas memórias continuam acesas, como uma estrela no alto da árvore, iluminando o caminho de quem um dia foi criança.


 

quinta-feira, dezembro 18, 2025

SABORES DA INFÂNCIA: FRUTAS, AFETO E VIDA NO SERTÃO DE SANTANA


 

            Cada dia amanhecia diferente para as crianças nascidas e criadas em Santana do Ipanema. A cidade oferecia tudo o que era essencial para crescer: espaço para brincar livre, escola para aprender, igreja para cultivar a fé e, sobretudo, exemplos vivos dos pais, avós e dos mais velhos, que ensinavam mais pelos gestos do que pelas palavras.

            Quando o assunto era alimentação, a infância santanense parecia ter um balaio sempre cheio. As frutas vinham das terras da família, dos quintais dos vizinhos, das propriedades de amigos e até de desconhecidos, porque naquele tempo a fartura da terra não conhecia cercas rígidas. O feijão tinha sua festa, o milho reinava nas fogueiras e bandeirolas de junho, e as frutas ocupavam um lugar diário e silencioso à mesa das crianças.

            No quintal da casa de Misael, o bisavô, havia uma goiabeira enorme, dessas que pareciam abraçar o céu. Era dali que ele tirava sacos cheios de goiabas para presentear os bisnetos. Enquanto as crianças se lambuzavam com o doce da fruta madura, Misael permanecia sentado na cadeira de balanço, observando em silêncio, como quem guarda o tempo dentro do peito. Aquele gesto simples — colher, oferecer, compartilhar — alimentava mais do que o corpo; fortalecia os laços e ensinava cuidado.

            O sábado era outro capítulo dessa história. Dia de feira, dia de cores e cheiros. Na feira de Santana havia um espaço só para elas: a feira das frutas. Conforme a época do ano, a variedade se espalhava pelas bancas como um arco-íris sertanejo. O caju era rei. Que criança não apreciava um caju até o fim, guardava as castanhas e, em casa, improvisava uma lata de óleo sobre tijolos, acendia o carvão e, em poucos minutos, tinha castanhas assadas? Sabia-se, desde cedo, que não se tomava leite antes de comer caju, que o sumo manchava a roupa, e esses saberes passavam de geração em geração, como uma cartilha oral da vida.

            Havia também pinha, manga, jaca mole ou dura, umbu para virar umbuzada, sorvete de umbu-cajá, acerola, graviola — o famoso coração-da-índia. O coco aparecia de muitas formas, inclusive o coco de ouricuri, transformado pelas vendedoras em rosários. As crianças, com aqueles colares no pescoço, iam comendo conta por conta, rezando e se alimentando ao mesmo tempo. Tinha ainda maracujá para refrescar o calor escaldante do sertão, tamarindo, mamão, melancia, pitomba, jabuticaba, melão.

            Colher a fruta no pé era um ritual. O cheiro da fruta madura, o cuidado ao escolher, o lavar na bica ou no pote de água, o comer ali mesmo, à sombra da árvore. Não havia embalagem, nem pressa. A saúde vinha da terra, do sol, da água e das mãos calejadas que plantavam e cuidavam. Aquela alimentação simples, natural e colorida fortalecia o corpo das crianças e criava nelas um respeito profundo pela natureza.

            Hoje, ao lembrar dessa infância, entende-se que aquelas frutas eram mais do que alimento: eram memória, afeto e aprendizado. Eram a prova de que crescer saudável também é crescer ligado à terra, sabendo de onde vem o que nos sustenta e reconhecendo que, muitas vezes, a maior riqueza está pendurada em um galho, esperando apenas ser colhida.

 

quarta-feira, dezembro 17, 2025

QUANDO O MUNDO CABE NA SALA DE CASA


 

            Em Santana do Ipanema, o aprendizado não cabia apenas dentro das paredes da escola. Ele escorria pelas ruas quentes, atravessava as calçadas de barro batido e entrava nas casas pela porta da frente, sempre aberto, sempre vivo. As crianças aprendiam ouvindo. O rádio, pousado num canto da sala, falava grosso, chiava, cantava e ensinava. Era por ele que o mundo chegava primeiro: notícias distantes, músicas que vinham de longe, vozes que pareciam morar em outras cidades e outros tempos. Entre uma canção e outra, a imaginação se alargava sem pedir licença.

            A escola ensinava as letras, os números e os mapas, mas era preciso mais. A igreja ajudava a organizar os sentimentos, dava nome ao silêncio e às perguntas profundas. Já a família fazia sua parte com zelo quase invisível: apresentava o mundo aos poucos, como quem abre janelas para o vento entrar sem derrubar a casa.

            Nem todas as famílias faziam assim, é verdade. Mas algumas tinham esse compromisso silencioso de ampliar horizontes. Levavam os filhos ao cinema. Mesmo que fosse só na cidade vizinha, planejavam viagens curtas, que pareciam longas aventuras. E quando não dava para ir longe, traziam o mundo para dentro de casa. Na sala, a vitrola girava como um coração mecânico. O ritual de comprar discos novos era levado a sério. Roberto Carlos embalava os domingos, Agnaldo Timóteo fazia a casa silenciar, Rita Lee sacudia os pensamentos, Elvis Presley atravessava oceanos e pousava ali, entre o sofá e a mesa de centro. A música era partilhada como pão: todos ouviam, todos sentiam.

            Na banca de revistas, a semana tinha cheiro de papel novo. A mãe escolhia Capricho, Sétimo Céu ou Manequim. O pai folheava a Isto É, Manchete, os jornais grandes que falavam do Brasil e do mundo. As crianças saíam carregadas de sonhos coloridos: Tio Patinhas, Turma da Mônica, Tex, Tarzan, Super-Homem, Batman. Cada revista era uma porta secreta. Os álbuns de figurinhas espalhavam-se pelo chão. Copa do Mundo, heróis, artistas. As figurinhas eram tesouros negociados com seriedade: trocas, promessas, apostas no bafo. Colecionavam-se imagens, palavras, chaveiros, pequenas coisas que davam a sensação de pertencer a algo maior.

            Lia-se muito, mesmo sem perceber que era leitura. Caça-palavras, quadrinhos, manchetes de jornal. Gazeta de Alagoas, Jornal de Alagoas, Diário de Pernambuco, Folha de São Paulo. Os nomes dos jornais soavam grandes demais para uma cidade pequena, mas cabiam perfeitamente nas mãos curiosas das crianças. Assim, o conhecimento crescia num movimento de troca. Os adultos ensinavam sem discursos longos, as crianças aprendiam brincando. Em Santana do Ipanema, aprender era viver. E viver, naquele tempo, era um exercício diário de escuta, partilha e imaginação — um mundo inteiro cabendo dentro de uma casa, de um disco girando, de uma revista recém-aberta.


 

terça-feira, dezembro 16, 2025

OS CAMINHOS DA FÉ NA INFÂNCIA SERTANEJA


             A quarta-feira chegava como um suspiro pesado, vestida de roxo e silêncio. “Oh, quarta-feira ingrata, chegou tão depressa só para contrariar”, diziam os mais velhos, e a frase ecoava pelas ruas de Santana do Ipanema como um sino invisível anunciando o fim da alegria solta do carnaval e o começo de um tempo outro: a Quaresma. Um tempo de dentro, de freio no corpo e escuta da alma.

            Nas casas, os quadros de santos, os crucifixos e as imagens que sempre vigiaram a vida cotidiana eram cobertos com tecidos roxos. As paredes ficavam estranhas, como se os santos também estivessem em recolhimento. As crianças aprendiam cedo que aquele gesto simples não era castigo, mas respeito. Aprendiam que nem tudo precisa estar à mostra, que há momentos de esconder para compreender melhor.

            Na igreja matriz de Senhora Santana, os bancos se dividiam em duas carreiras: de um lado os homens, do outro as mulheres. Elas chegavam de véu na cabeça, sinal de humildade e tradição. Para as crianças, aquilo tudo parecia uma grande coreografia sagrada. Cada gesto tinha um sentido, cada silêncio ensinava mais do que muitas palavras. Ali se aprendia a esperar, a ouvir, a permanecer quieto — virtudes raras, mas fundamentais para a vida.

            A Semana Santa era o coração desse aprendizado. Domingo de Ramos, com os galhos levantados como esperança verde. A Procissão do Encontro, carregada de emoção. O Lava-pés, que ensinava que até o maior deve saber se abaixar. O Senhor Morto, quando o mundo parecia parar e o choro contido ensinava sobre a dor. O Sábado de Aleluia, misto de medo e expectativa. E, por fim, a Ressurreição, quando a alegria voltava como quem retorna para casa.

            As crianças participavam de tudo. Faziam jejum do jeito que podiam, respeitavam o dia de não comer carne, iam à igreja ajoelhar — mesmo que o tempo parecesse eterno para pernas tão pequenas. Confessavam, comungavam, aprendiam a pedir perdão e a recomeçar. Aprendiam que errar faz parte, mas reconhecer o erro é o que forma o caráter.

            Na sexta-feira, a fé virava gesto concreto. As famílias separavam arroz, feijão, farinha, pedaços de bacalhau. Era para repartir com quem tinha menos. As crianças observavam, ajudavam, perguntavam. E assim aprendiam, sem lição escrita, que fé sem partilha é vazia, e que dividir é uma forma silenciosa de rezar. Havia ainda a subida à Serra da Micro-ondas, o ponto mais alto da cidade. A procissão seguia pelos becos, descia ao rio, cruzava a velha ponte de pedra, passava pelas terras de seu Ronasso e subia o morro. Descalços, com velas acesas, relíquias nas mãos e promessas no coração, homens, mulheres e crianças caminhavam juntos. Lá em cima, diante do cruzeiro e da pequena igrejinha, Santana do Ipanema se abria inteira aos olhos. E as crianças aprendiam que a fé também é esforço, é caminho íngreme, é persistência.

            O sábado tinha outro tom. As ruas se enchiam de risos nervosos e barulho com a malhação. A história de que o padre Cirilo estava trancado na igreja procurando a aleluia — e que, se não encontrasse, o mundo acabaria — misturava medo e fantasia. Mas até isso ensinava: que o fim só existe para dar lugar a um recomeço.

            No domingo da Ressurreição, tudo mudava. O roxo cedia lugar à luz, os santos eram descobertos, os sinos tocavam diferente. A cidade respirava alegria. As crianças sentiam, mesmo sem saber explicar, que algo importante havia sido aprendido. Que depois da dor vem a esperança. Que depois do silêncio, a palavra. Que depois da morte, a vida.

            Assim, entre véus, jejuns, procissões e partilhas, as crianças de Santana do Ipanema foram sendo moldadas. A fé não era apenas rezada — era vivida. E desses ritos simples nasceu uma formação moral profunda: respeito, solidariedade, humildade e esperança. Valores que, como a cidade vista do alto da serra, permanecem gravados na memória para sempre.

 

segunda-feira, dezembro 15, 2025

UM TABULEIRO DE MEMÓRIAS

            


             A infância em Santana do Ipanema não se mede em anos, mede-se em passos. Passos dados na rua Antônio Tavares, a rua do Sebo, onde cada porta aberta era uma lição silenciosa e cada som era uma aula sem caderno. A criança aprendia antes mesmo de saber que estava aprendendo. Aprendia com o cheiro da terra molhada depois da chuva forte de verão, quando os trovões pareciam conversar com os telhados e a água corria apressada pelas calhas, como se também tivesse compromissos. Aprendia com o calor das tardes de dezembro, com o suor escorrendo e o tempo passando devagar, ensinando que o trabalho exige paciência.

            Logo cedo, no caminho da padaria, o canto estridente dos pássaros engaiolados anunciava o dia. O galo-de-campina, em frente à alfaiataria de Juca, cantava como se costurasse o tempo com a própria voz. Dentro da casa-oficina, o zig-zag da máquina de costura respondia ao canto do pássaro. Era música de trabalho. Juca Alfaiate transformava pano em destino: ternos para casamentos, formaturas e despedidas. As crianças observavam os manequins alinhados, vestidos de sonhos alheios, e aprendiam que as mãos humanas eram capazes de criar beleza, sustento e identidade.

            Do outro lado da rua, Pedro, na estofaria, ensinava sem palavras que nada precisava ser descartado tão facilmente. Sofás e poltronas ganhavam nova vida, assim como a cidade ganhava movimento. A criança entendia, ainda que sem nomear, o valor do reaproveitar, do cuidar, do manter vivo o que parecia gasto.

            Descendo em direção ao rio Ipanema, estava Bastos, o homem do couro. Seu ofício tinha cheiro forte e som de faca cortando matéria bruta. Jibões, selas, alpargatas — o sertão passava por suas mãos. Os pássaros cantavam em gaiolas, alegrando os ouvidos humanos, enquanto a criança começava, ainda que timidamente, a perceber que o mundo carrega contradições: beleza e prisão, canto e silêncio, trabalho e limites.

            Mais adiante, a gráfica de Cajueiro pulsava como um coração mecânico. Tipos de metal, papel, tinta preta nos aventais. Ali nasciam notas fiscais, calendários, anúncios. A criança via as letras ganharem forma e aprendia que o trabalho também comunica, registra, organiza o tempo e a vida coletiva.

            Sentado à porta, o senhor Rêgo trançava palhinha com a calma de quem sabe que o saber só permanece se for partilhado. Assim como Antônio Dantas, na marcenaria, ele deixava as crianças se aproximarem, ajudarem, aprenderem. Não era apenas madeira ou palha: era o ensinamento de que o trabalho digno se transmite pelo exemplo, pelo gesto paciente, pela confiança no outro.

            A rua do Sebo era uma escola sem paredes. A criança crescia entendendo que o mundo se constrói todos os dias, com esforço, criatividade e cooperação. Mesmo sem saber que o tempo traria máquinas e mudanças, ela guardava no corpo e na memória a certeza de que o trabalho humano tem alma. Hoje, ao revisitar essas ruas pela lembrança, entende-se que conviver com os meios de produção não era apenas observar o ganha-pão dos adultos. Era aprender sobre pertencimento, responsabilidade e futuro. Era descobrir que cada profissão carrega uma história e que toda cidade se sustenta nas mãos de quem cria, conserta, imprime, costura e ensina.

            A infância em Santana do Ipanema foi isso: um tabuleiro de memórias onde cada casa era uma peça, cada trabalhador um mestre, e cada criança, sem perceber, já ensaiava os passos do mundo.

domingo, dezembro 14, 2025

QUANDO OS BICHOS MORAVAM NOS QUINTAIS

 



            A sociedade sempre caminhou empurrada por suas próprias necessidades. Desde os tempos mais antigos, o ser humano cria regras, escreve leis, estabelece limites, na tentativa de melhorar a convivência entre si e com os outros seres que dividem a terra. Nem sempre essas regras chegam ao mesmo tempo a todos os lugares, nem são compreendidas da mesma forma. No sertão brasileiro, isso ficou muito claro ao longo dos anos sessenta e setenta do século XX.

            Já existiam leis que falavam da proteção dos animais silvestres, mas elas pareciam distantes da realidade de cidades como Santana do Ipanema. A preocupação maior era abrir estradas, erguer prédios, fazer a cidade crescer, vencer a seca, garantir o básico. A natureza continuava ali, abundante aos olhos de quem nela vivia, e os animais silvestres ainda faziam parte do cotidiano das famílias, quase como uma extensão do quintal.

            Muitas crianças daquela época cresceram dividindo a casa com bichos que hoje só se veem em livros ou reservas ambientais. Quase sempre chegavam filhotes, encontrados durante as caçadas dos homens ou recolhidos em viagens pelas rodovias recém-abertas. Um sagui passava de mão em mão, preso pela cintura a um cordão, divertindo a meninada com seus pulos rápidos e olhos vivos. Pequenos macacos viviam situação parecida, tratados como brinquedos curiosos, sem que ninguém imaginasse o quanto aquilo lhes custava.

            Nos fundos das casas, havia espaços reservados aos cágados. Ali, reproduziam-se como galinhas, alimentados diariamente, crescendo sob o olhar atento das famílias. Em dias de festa, escolhia-se um ou dois, e a cozinheira preparava o prato principal, servido com naturalidade, como se fazia com qualquer criação doméstica.

            Em quintais maiores, emas e seriemas caminhavam livres, enchendo as manhãs com seus cantos inconfundíveis. Papagaios viviam presos por pequenas correntes ao pé, acomodados em engenhocas de madeira com um poleiro improvisado. Passavam os dias repetindo palavras, gritos e risadas, ecoando tudo o que ouviam, para orgulho dos donos e alegria das visitas. Havia ainda o bicho-preguiça, colocado nos galhos das árvores do jardim. Movia-se lentamente, quase como se o tempo fosse outro para ele, enquanto as crianças observavam, fascinadas, cada pequeno gesto. Em algumas casas, criavam-se pequenos veados como se fossem ovelhas, caminhando mansos pelo terreno, aceitos como parte da família. Nas feiras, mocós eram vendidos sem espanto, teiús permaneciam em cativeiro, pássaros cantavam presos em gaiolas e gaiolões. Tudo acontecia à luz do dia, sem fiscalização, sem medo, sem a noção clara de que aquilo pudesse ser errado.

            Para as crianças, era festa, era brincadeira, era encantamento. Era a sensação de domínio sobre um ser vivo que despertava curiosidade e afeto. Para os pais, muitas vezes, era o troféu de uma caçada bem-sucedida, sinal de habilidade e coragem. Mas, para os animais, era o cativeiro, a perda da liberdade, o afastamento definitivo da vida para a qual nasceram.

            Hoje, o tempo ensinou outras coisas. A sociedade mudou, as leis ganharam voz, a consciência ambiental cresceu. Olhar para essas memórias não é negar o carinho que existia, nem apagar a realidade daquele tempo. É compreender que era outra época, com outros valores e prioridades, mas também reconhecer que aprender é transformar. Esses bichos que um dia habitaram quintais e salas agora nos pedem algo simples e profundo: respeito. Que continuem vivos nas lembranças, nas histórias contadas com afeto, mas que permaneçam livres na natureza, onde sempre foi o seu lugar.


sábado, dezembro 13, 2025

QUANTOS MOVIMENTOS TEM UMA CIDADE PEQUENA?



            Para quem olha de longe, uma cidade pequena parece imóvel, como uma fotografia antiga esquecida na parede da sala. Mas quem viveu nela sabe: o movimento não está apenas nas ruas cheias, e sim nos encontros, nos sons, nos rituais repetidos que dão sentido aos dias. Santana do Ipanema, no sertão alagoano dos anos 1960 e 1970, nunca esteve parada. Ela pulsava — do seu jeito.

            Para uma criança daquele tempo, o mundo era grande mesmo cabendo em poucas quadras. O sino da igreja marcava as horas, o rádio atravessava as paredes das casas, a feira mudava o ritmo das manhãs, e o Cine Alvorada acendia sonhos quando a noite chegava. No começo, eram as películas americanas, imagens distantes de outros mundos. Mas, nos anos 1970, algo mudou. O cinema deixou de ser apenas tela e virou palco.

            Quando seu Tibúrcio passou adiante o Cine Alvorada e Paulo Ferreira abriu as portas para os programas de auditório de domingo, Santana ganhou um novo coração cultural. A cidade inteira parecia caber ali dentro. Crianças com os olhos atentos, adolescentes cheios de expectativas, adultos orgulhosos de ver os seus brilharem sob as luzes do palco. Cantores amadores, bandas formadas por jovens santanenses, desafios improvisados, humoristas, dançarinas, mágicos — tudo tinha espaço. Tudo era aplauso.

            Para uma criança sentada nas primeiras fileiras, aquele não era apenas um espetáculo. Era uma escola invisível. Aprendia-se a ouvir, a respeitar quem estava no palco, a perder e ganhar em público, a rir de si mesmo, a admirar o talento do outro. Aprendia-se que a cidade era feita de gente, e que cada pessoa tinha algo a oferecer. As homenagens do Dia das Mães, as gincanas, as brincadeiras coletivas ensinavam afeto, pertencimento e gratidão — lições que nenhum livro sozinho conseguiria ensinar.

            E quando artistas de alcance nacional, como Antônio Marcos e Cláudia Barroso, subiam ao palco do Cine Alvorada, Santana sentia que o mundo também passava por ali. A cultura não era coisa distante das capitais; ela estava presente, viva, acessível. Entre o rádio que já fazia parte do cotidiano, a televisão que chegava devagar e as festas tradicionais de padroeira, os programas de auditório completavam o ciclo da alegria coletiva.

            A cultura, naquele tempo, não era luxo. Era necessidade. Era o fio que ligava gerações, que dava sentido às lembranças e moldava o caráter das crianças que cresciam vendo, ouvindo e participando. Uma cidade pequena tem muitos movimentos — alguns quase invisíveis para quem passa rápido. Mas eles ficam marcados para sempre em quem viveu. Santana do Ipanema se movia assim: em aplausos, em risos, em músicas desafinadas e cheias de verdade. E cada criança presente levava um pouco disso para a vida inteira.


 

sexta-feira, dezembro 12, 2025

O CALEIDOSCÓPIO DE MISAEL


            O mundo infantil no início da segunda metade do século XX, em Santana do Ipanema, era um universo de invenções, de risos soltos e de descobertas que nasciam das mãos simples e do olhar atento dos mais velhos. As crianças aprendiam muito antes de saber ler, guiadas por tios, avós e bisavôs que carregavam no peito histórias vividas e sabedoria acumulada.

            Foi nesse tempo que Misael, o bisavô, entrou para a nossa memória como um guardião de encantos. Já era idoso, os cabelos ralos e brancos, mas o brilho nos olhos lembrava um menino que tinha atravessado dois séculos. Misael nascera ainda no finalzinho do Império, quando o Brasil dava seus últimos passos antes de se tornar república. Cresceu vendo o país mudar, tornou-se adolescente já republicano, e adulto quando o novo século nascia cheio de promessas. Casou com Júlia e construiu com ela uma família de quatro filhas, das quais três se criaram — entre elas, Iluminata, a caçula, que mais tarde seria mãe de Maria, minha mãe.

            O sangue de Misael carregava também a força dos comerciantes sertanejos. Ele era de uma família envolvida no comércio e na distribuição do sal que chegava de Mossoró. O sal fazia um longo caminho: partia das salinas, descia para o porto de Areia Branca e, de lá, seguia pelos vapores até Penedo. Subia o Rio São Francisco até Pão de Açúcar, onde tropas de burros marcavam o passo firme rumo ao sertão. Era assim que o sal chegava a Santana do Ipanema, espalhando-se depois por todas as feiras e povoados da região.

            Talvez fosse essa vivência — a de ver o mundo em movimento, passando de um lugar a outro, mudando de forma como as águas do rio — que fazia de Misael um homem tão sensível às pequenas maravilhas. Foi ele quem, certo Natal, colocou nas mãos de cada bisneto um presente que parecia nascido da própria magia: um caleidoscópio feito por ele, com tubos simples, pedacinhos de vidro colorido, fragmentos brilhantes e uma engenhoca de espelhos cuidadosamente montada. Não era comprado. Era construído. Era pensado para nós.

            Quando aproximávamos o olho do pequeno furo e girávamos o tubo, o mundo mudava. As cores se juntavam e se separavam como se dançassem. Estrelas apareciam do nada, flores se formavam e se desfaziam, desenhos que não existiam em lugar nenhum se revelavam só para nós. Cada giro era uma surpresa, cada volta um universo inteiro. E era impossível não pensar que aquele presente dizia mais sobre Misael do que qualquer palavra: ele queria que víssemos além, que enxergássemos beleza onde o cotidiano escondia, que descobríssemos que o mundo — mesmo o mundo simples de Santana do Ipanema — podia ser encantado se tivéssemos o olhar certo.

            O caleidoscópio não era apenas um brinquedo. Era um convite. Um convite para olhar a vida com cores, com movimento, com surpresa. Um convite para ver o mundo como Misael sempre viu: grande, transformável e cheio de possibilidades.

            Até hoje, quando lembro daquele pequeno tubo nas mãos de criança, sinto que vejo de novo o brilho no olhar do bisavô — o mesmo brilho que ele colocou dentro de cada caleidoscópio. Um brilho que continua vivo, girando dentro da nossa memória, como as formas coloridas que nunca se repetiam. 

quinta-feira, dezembro 11, 2025

A NOITE EM QUE AS HISTÓRIAS CRIAVAM CRIANÇAS



             Em Santana do Ipanema, quando o sol se escondia atrás das serras e deixava o céu rosado como algodão de açúcar, as ruas iam ficando mansas. Não havia televisão, não havia celular, e sequer um rádio fazia barulho em todas as casas. Mas ninguém sentia falta. O tempo parecia mais cheio, como se cada minuto tivesse uma largura maior.

            As crianças corriam de um lado ao outro, suadas, rindo, chutando bola ou apostando corrida até o fim da rua. Os adultos vinham voltando do trabalho — as mulheres do comércio, das repartições, das escolas; os homens dos serviços pesados, do campo, das oficinas. Todos carregando o cansaço nos ombros, mas um cansaço bom, daqueles que se lava na conversa. E era ali, nas calçadas iluminadas pelo candeeiro ou pelo generoso brilho da lua cheia, que o verdadeiro espetáculo começava.

O Círculo das Histórias

As crianças se sentavam primeiro. Sempre elas. Como se tivessem sede de ouvir, os olhos brilhando, as pernas inquietas. Os adultos vinham depois, arrastando bancos, cadeiras de balanço, tamboretes. E então formava-se aquele círculo sagrado — o palco onde a imaginação tinha licença de dançar.

            Dona Alzira era a primeira a falar. Sempre foi. Tinha uma voz grave e contava sobre os espíritos que apareciam para revelar onde estava enterrada a botija — mas só revelavam para quem tinha o coração limpo. As crianças tremiam, mas não desgrudavam da história. Seu Raimundo, por sua vez, lembrava dos homens que viravam animais ao bater da meia-noite. Um vulto que corria como quem foge ou persegue — ninguém sabia. As crianças se entreolhavam e ficavam mais juntinhas. E havia, claro, o terrível papa-figo, que surgia sempre quando alguma criança enrolava demais para entrar em casa. Bastava a mãe dizer: “Olha que o papa-figo anda por aí…” e pronto — era como se a noite toda prendesse a respiração.

Mas nem tudo era medo.

            Havia também as histórias de amor antigo, contos cheios de humor e sabedoria, causos que falavam de amizade, de respeito, de conviver em grupo sem pisar no outro. Histórias onde cada erro era um ensinamento e cada acerto, um brilho que mostrava o caminho certo.

Aprender Crescendo Juntos

            As crianças, sem perceber, aprendiam mais ali do que em qualquer caderno da escola.

            Aprendiam a esperar sua vez de falar.

            Aprendiam a escutar com atenção.

            Aprendiam que a vida é cheia de mistérios, mas também de belezas simples. E, principalmente, aprendiam que comunidade é estar junto — com medo, com riso, com dúvida, com sonho. E quando a noite chegava ao fim, quando a lua já estava alta e o vento frio batia no rosto, cada criança voltava para casa sentindo-se maior. Mais esperta. Mais parte do mundo. Porque naquela época, antes de telas e botões, quem educava também era a palavra — viva, quente, encantada. E era ali, nas calçadas de Santana, que as crianças aprendiam a ser gente.

quarta-feira, dezembro 10, 2025

A DOÇURA QUE MANTINHA A CASA DE PÉ

 

            




           Nos anos 1970, Santana do Ipanema era um vai-e-vem danado! Gente chegando de São Paulo com sotaque arrastado, gente partindo pra Recife levando saudade e esperança na mala. O sertão parecia respirar aquele movimento — uma troca invisível de sonhos e histórias.

            No beco de seu Felisdoro, onde as vozes ecoavam entre paredes estreitas, vivia Dona Zefinha, uma mulher miúda, forte como raiz de mandacaru, e mãe de três. O marido? Tinha ido embora “atrás de sorte”, como se dizia. Nunca mais voltou. Mas Zefinha ficou — ficou porque sabia que o chão de Santana era duro, mas era seu. Com coragem, ela transformou a pobreza numa oficina de possibilidades. Certo dia, enquanto olhava para a panela de alumínio surrada, pensou: “Se açúcar der alegria pra menino, dá sustento pra gente grande também.”

            E assim nasceu o império doce de Zefinha.

            Ela colocava água e açúcar na vasilha e ficava ali, mexendo com firmeza, observando o ponto certo — aquele instante exato em que o caldo engrossava e já cheirava a infância. Em um tabuleiro furado, ela encaixava cones de papel que fazia à mão. Despejava o mel dourado e, com um movimento rápido, enfiava o palito. Estava criado o pirulito de tabuleiro. Simples. Modesto. E poderoso. Quem saía vendendo era Luizinho, o mais velho, correndo os becos, abrindo caminho pela cidade com o grito que virou trilha sonora de muitas tardes:

— “Olhe o pirulito! Enrolado num papel e enfiado num palito!”

            Era bonito de ver o menino, magro, descalço, mas com o peito cheio de orgulho. Cada centavo voltava para casa e virava feijão, caderno, sabão, um par de chinelos para o mais novo. Com o tempo — ah, com o tempo a criatividade de Zefinha floresceu como mandacaru depois da chuva. Ela comprou forminhas de metal trazidas por um vizinho que voltara de São Paulo. E os pirulitos ganharam forma: chupeta, coração, pássaro, estrelinha. Sua arte virou atração. Criança já reconhecia de longe o brilho do açúcar colorido. Zefinha virou referência. Não tinha estudo, não tinha marido, mas tinha coragem, mãos ligeiras e uma fé que nunca lhe cabia no peito.

            À noite, quando a cidade já estava calma, ela se sentava na porta, abanando o rosto suado, enquanto os meninos brincavam. Olhava pro céu estrelado e pensava, silenciosa: “Criei um mundo com o que tinha.”

            E era verdade.

            No sertão da segunda metade do século XX, onde a vida teimava em ser dura, aquelas mulheres — Zefinha, Maria de Chico, Rita de Jaime, Tereza de João Pequeno — sustentavam a comunidade com invenção, suor e uma resistência bonita de se ver. Não eram lembradas nos jornais, não discursavam em palanques, mas seguravam casas inteiras nas costas. Criaram filhos, criaram caminhos e criaram futuro num lugar onde muitos só viam seca e falta.

            Zefinha nunca foi rica. Mas deixou herança: a certeza de que, quando a vida apertava, ela sempre arranjava um jeito de adoçar o mundo. Essa era a força da mulher sertaneja: lutadora, criativa, incansável — capaz de transformar açúcar em sobrevivência e amor em alimento.

sábado, dezembro 06, 2025

A INFÂNCIA QUE ENSINA SEM TIRAR O ENCANTO

 

            Nasci em Maceió, mas foi em Santana do Ipanema que aprendi a ser menino. Cheguei ainda com semanas de vida, embalado pelo aconchego da família que me esperava na travessa Antônio Tavares. Ali havia uma casa grande, pulsante, cheia de vida, ladeada pela dos meus avós paternos: seu Deoclécio, sempre com sua postura de homem sério e trabalhador, e dona Amélia, de olhar firme, coque apertado e carinho pronto para qualquer neto que lhe aparecesse pela porta.

            O centro do meu mundo era o armazém de secos e molhados do meu pai, Zezito, na Barão de Rio Branco. À primeira vista, era apenas uma mercearia simples; mas para mim, era uma escola completa. Entre sacos de feijão, rolos de barbante, latas coloridas e o perfume das especiarias, aprendi a fazer contas antes mesmo de saber escrevê-las no caderno. Aprendi a medir, pesar, dar o troco, escolher o melhor produto e, sobretudo, a olhar no olho de quem comprava — porque vender também é confiar.

            Mas nada disso impediu que eu fosse criança.

            A rua, a escola e a brincadeira tinham tanto espaço quanto as prateleiras do armazém. Estudei desde os quatro anos na escola de dona Penina e da professora Maria. Ali, entre cantigas, lições simples e o quadro-negro que rangia, aprendi as primeiras letras. Depois, no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, com a professora Laura Chagas, conclui o quarto ano, trazendo comigo não apenas cadernos cheios, mas histórias e travessuras que só quem estudou em escola pública do interior conhece.

            Foi também nesse período que a figura de minha mãe, Maria do Socorro, começou a ganhar uma força especial na minha formação. Se meu pai me ensinava o comércio, ela me ensinava o mundo. Sua arte era a palavra escrita — e era com livros abertos, cadernos rabiscados e diálogos sempre ricos que ela me empurrava para a leitura e para a escrita. Minha mãe convivia com a elite intelectual de Santana do Ipanema, discutia literatura, preservava histórias e registrava em seus escritos uma verdade que ecoa até hoje: Santana do Ipanema é Terra de Escritores. Esse orgulho, ela não apenas defendia — ela plantava em mim.

            Enquanto isso, meu pai ia e voltava de suas viagens comerciais, sempre trazendo alguma novidade para vender. E nós, eu e meus irmãos, transformávamos cada mercadoria numa aventura. Quando veio a carga de laranjas, seguimos para a feira das frutas. Marcello ao meu lado, vendemos tudo. No dia do saco de maxixes, fiquei perto do mercado da carne — e ali descobri que a voz firme vale tanto quanto a coragem de ficar sozinho no meio da feira. Houve também o dia dos baldes de mel de abelha. Enchemos garrafas de vidro e saímos de porta em porta. Quem comprava levava o mel, mas nós levávamos o aprendizado: coragem, comunicação, persistência.

            E como esquecer o sábado da rapadura?

            Um quarto inteiro da nossa casa tomado por aquele cheiro doce. Eu e Mércia pegamos a velha carroça de pedreiro, fomos à feira e montamos nosso pequeno comércio. Ela atendia os fregueses enquanto eu corria de volta para casa buscar mais mercadoria. A rapadura sumia das nossas mãos como mágica — e nós ríamos, suados, felizes, sentindo que o mundo podia ser grande, mas cabia na palma das nossas mãos trabalhadoras.

            Nessa rotina, descobri que responsabilidade não rouba a infância — ela dá forma a ela. Eu brincava, estudava, corria nas ruas, inventava mundos com meus irmãos. Mas também ajudava, participava, aprendia a confiar em mim mesmo. A vida adulta pode até ter escolhido outros caminhos para mim, mas o que aprendi ali ficou como alicerce: disciplina, criatividade, coragem, respeito pelo esforço e pela palavra dada. E muito disso devo a meus pais: ao pai que me ensinou o valor do trabalho, e à mãe que me ensinou o poder das palavras.

            Hoje, ao revisitar essas memórias, percebo algo ainda mais profundo: Educar uma criança não é afastá-la do mundo, mas deixá-la participar dele aos poucos. É permitir que ela seja útil sem deixar de ser criança. É ensinar responsabilidade sem apagar o brilho curioso do olhar. É mostrar que trabalho é digno, mas que brincar também é. É lembrar que toda lição, quando vivida com amor, vira história — e histórias duram para sempre.

E estas são as minhas.

            As que hoje divido com vocês, com o mesmo sabor doce de rapadura que marcou minha infância em Santana do Ipanema — terra que minha mãe, com sua escrita firme, eternizou como Terra de Escritores.

sexta-feira, dezembro 05, 2025

O EDUCANDÁRIO DAS INFÂNCIAS FELIZES

 

            Diziam que, em Santana do Ipanema dos anos de 1960, todas as crianças tinham vindo ao mundo no mesmo ano. Eram tantas, espalhadas pelas ruas de pedra e barro, que pareciam formiguinhas coloridas correndo, rindo, inventando mundos inteiros com um pedaço de madeira, uma pedrinha lisa ou um galho de árvore. A cidade vibrava com o barulho dos passos miúdos.

            No educandário da professora Penina, o coração da infância batia mais forte. A escola tinha dois turnos e duas mestras: dona Penina, firme como um tronco de imburana, e a professora Maria, doce como o mel de engenho. Nas salas multisseriadas, onde pequenos e um pouco maiores aprendiam lado a lado, tudo virava aprendizado. De manhã bem cedo, antes que o sol abrisse as janelas do céu, as crianças já estavam sentadas, atentos aos patinhos amarelos que dona Penina colava no quadro flanelado. Cada patinho, com seu biquinho sorrindo, ensinava números, letras e até um pouco de ciência:

— “É um patinho amarelinho… são dois patinhos amarelinhos… são três patinhos amarelinhos… todos pequenininhos!”

            Era cantar para aprender e aprender cantando, jeito de criança não esquecer jamais. Quando a lição era de geografia, as professoras explicavam com música, mãos dançando no ar:

— “Chove chuvinha, chove chuvinha de janeiro… corre, corre aguaceiro!”

            As mãos viravam nuvens, os dedos viravam pingos, e os olhinhos brilhavam como quem vê o mundo nascer de novo.

            Mas o melhor dia era quando a professora Penina anunciava:

— Amanhã tem passeio no campo!

            A partir daí, ninguém dormia direito. Os corações ficavam batendo como zabumba de São João. No dia seguinte, lancheiras coloridas balançavam no braço das crianças, carregando suco, bolo e algum segredo doce que a mãe tinha colocado às escondidas.

            Chegando na fazenda, tudo era festa. Havia porcos resmungões, galinhas esbaforidas, jumentos pacientes, perus orgulhosos, guinés apressados, vacas dóceis e bezerros com cheirinho de leite fresco. Cada animal era um universo novo. Na hora do lanche, as professoras estendiam uma toalha grande sob a sombra generosa de uma árvore. As crianças se sentavam ao redor, formando um círculo de pureza tão bonito que até o vento parava para ver. Antes de comerem, faziam uma oração de agradecimento — pelo dia, pelos amigos, pelos alimentos, pela alegria tão grande de ser criança.

            Depois, vinham as brincadeiras: correr, subir em árvore, inventar histórias, colecionar folhas, descobrir o mundo como quem descobre um tesouro. E, no fim da tarde, já com o sol preparando a cama por trás das serras, era hora de voltar. As crianças subiam animadas na carroceria da camionete de um dos pais. Iam empilhadas de felicidade e cansaço, cabelos desarrumados pelo vento, corações cheios de coisas que não se explicam, só se sentem.

            A viagem de volta parecia sempre mais curta. Talvez porque todos voltavam adormecendo, embalados pela certeza de que um dia bonito tinha sido vivido.

            Naquela Santana do Ipanema, aprender era um ato de amor. E ser criança… ah, ser criança ali era ser dono da rua, do riso, do instante e da esperança. Era viver num tempo em que as professoras eram como mães e a escola era como casa.

            E quem viveu aquilo guarda até hoje, no fundo da memória, o cheiro de mato, o brilho dos patinhos amarelos e a voz suave de quem dedicou a vida a ensinar:

— “Chove chuvinha…”

quinta-feira, dezembro 04, 2025

O DIA EM QUE O MUNDO COUBE EM SANTANA DO IPANEMA

              Ser criança em Santana do Ipanema nos anos de 1970 era viver entre o barro quente das ruas, os becos que guardavam segredos e o rio que ensinava lições de aventura. Mas havia um dia que não se parecia com nenhum outro. Um dia em que o mundo inteiro parecia caber dentro da pequena cidade sertaneja: 21 de junho de 1970, final da Copa do Mundo.

            Junho sempre fora mês de fogueiras, milho assado e bandeirolas balançando no vento frio que vinha da Serra. As crianças esperavam São João como quem espera uma festa de aniversário. Mas naquele ano, o clima parecia diferente. Era como se o povo estivesse aguardando dois santos: São João… e o futebol brasileiro.

            O Brasil entraria em campo para tentar o tricampeonato. E o técnico era um alagoano — Zagalo, orgulho que abraçava o estado inteiro.

A Cidade que parou

            Quando o relógio marcou três da tarde em Santana, meio-dia no México, a cidade silenciou. As crianças, que normalmente corriam descalças pelas ruas, naquele dia ficaram dentro de casa, grudadas nos rádios que chiavam. O silêncio era tão forte que parecia que até o vento tinha parado para ouvir a narração.

E então… GOL!

            As portas das casas se abriram de repente. Era grito, era riso, era o Brasil inteiro dentro de cada santanense. Houve também o instante do suspiro atravessado, o grunhido de decepção quando o México marcou. Mas ninguém desistiu: o povo brasileiro nunca desiste.

Os Homens que Foram Ver o Mundo Pela TV

            Televisão em Santana praticamente não existia. Era luxo, era coisa rara, bicho que ninguém quase via. Por isso, alguns comerciantes e políticos se reuniram e decidiram pegar a estrada de poeira até Dois Riachos, rumo ao sítio localizado na região conhecida como Pai Mané. Lá, numa grande residência da senhora Maria da Glória, filha de dona Sinhá, santanense, havia o milagre moderno: uma televisão.

            Os carros partiram como quem vai a uma romaria. Ao chegarem, foram recebidos pela dona da casa, e os santanenses se espremiam diante da tela pequena, como se o mundo fosse caber inteiro ali. E coube. Ali eles viram Pelé voar, Gérson distribuir o jogo, Jairzinho correr como um raio e Carlos Alberto Torres marcar um dos gols mais bonitos da história.

A Volta Triunfal

            Quando retornaram já era noite e Santana parecia outra cidade. Os foguetes brilhavam fortes, a praça estava tomada, e o ar cheirava a alegria, suor, milho e vitória. Ali, naquele pedaço de chão, o povo dançava, se abraçava, sorria como se cada um tivesse feito parte do time. Foi a noite em que Santana do Ipanema, assim como o Brasil inteiro, comemorou não apenas um título. Comemorou ser brasileiro.

quarta-feira, dezembro 03, 2025

A IGREJA NO CORAÇÃO DA INFÂNCIA

           Na Santana do Ipanema dos anos de 1960 e 1970, o mundo das crianças era pequeno em tamanho, mas enorme em significado. A família, a escola e a igreja formavam um triângulo perfeito, onde cada lado sustentava o outro, organizando os dias, as rotinas e até os sonhos de quem crescia naquele pedaço quente de Alagoas. No meio desse triângulo havia sempre a rua: os becos poeirentos, o rio Ipanema e as aventuras que faziam o tempo correr mais depressa.

            A família era presença constante. Era quem acordava cedo, quem chamava para o café, quem mandava fazer as tarefas e quem espalhava conselhos sobre o certo e o errado. Mas havia um outro lugar — grande, solene e cheio de mistério — que dava forma à vida comunitária: a Igreja Matriz de Senhora Santana. A igreja organizava o tempo. Organizava as festas, as missas, os domingos, o calendário inteiro da cidade. Nada acontecia sem que o sino da matriz anunciasse: era hora da missa, da procissão, da novena, da quermesse ou da tão esperada primeira comunhão.

            E era justamente a primeira comunhão que transformava o cotidiano das crianças.

            Uma vez por semana, no contraturno da escola, os meninos e meninas caminhavam até a matriz carregando um caderno e um lápis. Sentavam nos bancos de madeira e esperavam a catequista — a professora Letícia Santana, que também ensinava no Grupo Padre Francisco Correia. Ela falava com voz calma, mostrava a Bíblia, ensinava cantos, explicava parábolas, contava histórias que misturavam fé e moral. A igreja tinha seus rituais, e todos sabiam que os sacramentos eram passos obrigatórios para formar “gente de bem”: batismo, eucaristia, confirmação… Cada passo era acompanhado não só pela fé, mas pela comunidade inteira.

            Quando era anunciado o dia da primeira comunhão, parecia que a cidade se movia ao mesmo tempo. As mães eram chamadas à matriz para receber as orientações. E dali começava outra romaria: o armarinho das Irmãs Marques para os catecismos e velas; as Pernambucanas ou a loja de Gracita para escolher os tecidos; a sapataria de seu Marinheiro para comprar os sapatos Vulcabrás; e por fim, a costureira, que receberia o tecido branco e azul com a missão de confeccionar a roupa do grande dia. Depois disso tudo, ainda faltava passar na doceira, porque criança que comunga também precisa celebrar.

            Para os pequenos, porém, havia um momento que enchia o peito de medo: a confissão. Um dia antes da comunhão, a fila na sacristia serpenteava. O padre Cirilo sentado de um lado; do outro, cada criança ajoelhada, de mãos suadas, coração disparado, tentando se lembrar de pecados que nem sabia se tinha. Na noite anterior, muitos não dormiam, pensando no que dizer. Que pecados uma criança podia ter?

            Quando o padre perguntava:

— Conte seus pecados, era preciso responder. Mesmo sem saber o que era pecado, mesmo sem entender por que aquilo tudo era tão grande. E então surgiam pecados inventados, bobos, mas ditos com a seriedade de quem acreditava que o céu e o inferno dependiam daquelas palavras:

— Eu jogo pedra no beco do Panema, confessava um menino, tremendo.

            O padre ouvia, fazia uma pausa solene e decretava:

— Reze dois Pai-Nossos e duas Ave-Marias. E não peque mais.

            Apesar do medo, aquele ritual ensinava — talvez mais pelo sentimento do que pelas palavras — que havia responsabilidade, compromisso, pertencimento. Ensinar que ações tinham peso. Que a vida em comunidade exigia respeito, ordem, convivência. A igreja, com seus ritos e exigências, era também um fio invisível que costurava a cidade inteira: unia as famílias, marcava o ritmo do ano, guiava as crianças para a vida adulta e, sem que elas percebessem, construía uma base moral que ecoaria para sempre.

            Por isso, quem cresceu na Santana daqueles tempos lembra não apenas do catecismo, das roupas brancas e azul ou da fila da confissão. Lembra de como a igreja organizava a vida. Lembra da sensação de fazer parte de algo maior. Lembra, principalmente, da comunhão — não só com Deus, mas com a comunidade inteira.

            A primeira comunhão não era apenas um sacramento. Era um rito de passagem, uma aula de vida, uma pequena engrenagem do grande relógio social que a igreja mantinha funcionando.

            E assim, entre o som do sino, o cheiro das roupas novas, o conselho da professora, o olhar sério do padre e o amor das mães, cresciam as crianças de Santana do Ipanema — moldadas pelo tempo, pela fé e pelo sentimento de que a cidade, unida pela igreja, era uma grande família.

ENTRE O AZUL E O ENCARNADO: MEMÓRIAS DE UM NATAL IBÉRICO NO SERTÃO

            Santana do Ipanema, eita terra que mora dentro da gente. Há cidades que passam por nós; Santana, não. Ela fica. Fica nas palav...